AO LER O CONTO “O Bombeiro”, o editor desafiou Bradbury
a ampliá-lo para virar um romance: nascia “Farenheit 451” (Crédito:Divulgação)

Para todo sonho há um pesadelo correspondente. A primeira vez que a palavra “utopia” surgiu na literatura foi no romance homônimo do britânico Thomas More, em 1516. O escritor juntou vocábulos gregos e criou a expressão “não-lugar” para batizar de maneira irônica uma sociedade perfeita, impossível de ser alcançada. O conceito, na verdade, é bem mais antigo. Em “A República”, de Platão, ou “A Vida de Licurgo”, de Plutarco, um mundo baseado na justiça e na bondade já fazia parte do imaginário popular a ser buscado. Se na vida real isso é um desejo inalcançável, por outro lado o seu reflexo diametralmente oposto, a “distopia”, sempre esteve próxima da realidade.

O termo foi criado em 1868 pelo filósofo John Stuart Mill. O primeiro entre os autores contemporâneos que escreveram distopias foi o russo Yevgeny Zamyatin, que publicou “Nós” em 1924 e inspirou o clássico de George Orwell, “1984”, editado em 1949. Outros mestres do estilo surgiram depois, ao longo do século 20, influenciados pelo fantasma da revolução industrial e grandes dramas humanos, como as duas grandes guerras mundiais. Em 1935, aos quinze anos, o escritor americano Ray Bradbury vivia com os pais na pequena cidade de Waukegan, em Illinois. Nas noites em família, o adolescente ouvia pelo rádio as histórias de um líder na Alemanha que mandava queimar livros em praça pública. A distopia já era real, mas ele ainda era muito novo para saber o que significava aquilo. Ficou horrorizado com a ideia: alguém, em algum lugar, queimava livros. Como um fósforo que aguarda anos para ser riscado, a aberração ficou tão marcada em sua lembrança que, bem mais tarde, deu origem a seu romance de estreia – e um dos maiores clássicos da literatura moderna: “Farenheit 451”, de 1953.

CENTENÁRIO Ray Bradbury: editora Bilbioteca Azul lança “Zen e Arte da Escrita” e o inédito “O Homem Ilustrado” ainda em 2020 (Crédito:Gary Friedman)

O título diz respeito à temperatura exata em que os livros pegam fogo (233 graus Celsius). Antes de chegar à sua principal obra, Bradbury preparou o conceito e deu à luz personagens em contos igualmente distópicos, porém mais simples e embrionários. O lançamento “Prazer em queimar: histórias de Farenheit 451” celebra o centenário do nascimento do escritor, em 22 de agosto, e traz dezesseis contos, treze deles escritos antes de sua obra mais conhecida. Já é possível, porém, ver que a fagulha embrionária começava a ser acesa em textos como “Muito depois da meia-noite” e “O Bombeiro”, que já apresentam o personagem Guy Montag, protagonista de “Farehnheit 451”, e tramas semelhantes. Publicado inicialmente em uma revista literária, “O Bombeiro” chamou a atenção do seu editor, que pediu para o jovem escritor ampliar a história e transformá-la em romance.

TRAUMA Cena de François Truffaut: depois de “Farenheit 451”, o francês nunca mais dirigiu um filme em inglês (Crédito:Divulgação)

A edição brasileira da Biblioteca Azul tem tradução de Antonio Xerxenesky e Bruno Mattos. Para Mattos, é natural as distopias ganharem destaque em períodos de transformação negativa do mundo, como o atual. “No caso de Bradbury é especialmente interessante porque, enquanto outros autores privilegiam o autoritarismo sob o prisma do controle governamental, processo mais invasivo, o simbolismo de queimar livros foca mais no controle da informação que circula”, diz ele. “É uma maneira indireta de controlar o acesso aos horizontes mentais que as pessoas podem criar.”

DISTOPIA Produção da HBO: no filme de 2018 estrelado por Michael Shannon e Michael B. Jordan, a tecnologia também é vilã (Crédito:Divulgação)

Em termos literários, o estilo de Bradbury é mais acessível que o de nomes como George Orwell, de “1984”, ou Aldous Huxley, de “Admirável Mundo Novo”, publicado em 1932. É recheado de frases e diálogos curtos, diretos. Era um escritor cinematográfico, mais voltado para cenas descritivas do que para questões existenciais de seus personagens. Em seus livros, há mais reações do que reflexões. Queria transmitir o terror de seus conceitos de forma direta, sem ruídos. Apesar da linguagem visual, ironicamente os dois filmes inspirados em “Farenheit 451” são fracos. O primeiro, de François Truffaut, única produção em inglês do diretor francês, é poético demais para uma distopia de ficção científica; já o filme homônimo, produzido pela HBO em 2018 e dirigido por Ramin Bahrani, é visualmente interessante, mas com interpretações frias e distantes. A ironia é maior quando lembramos que o próprio Bradbury se dedicou a escrever roteiros, como o clássico “Moby Dick”, em 1956, estrelado por Gregory Peck e dirigido por John Huston. Também teve diversas obras adaptadas para a televisão, cinema, histórias em quadrinhos e até minisséries radiofônicas.

“Prazer em Queimar: histórias de Farenheit 451” Ray Bradbury
Ed. Biblioteca Azul Preço: R$ 59,90 (Crédito:Divulgação)

Macartismo

Em termos temáticos, a obra de Bradbury também guarda diferenças com Orwell e Huxley. Enquanto os ingleses viveram o auge da guerra e as ameaças de Hitler in loco, Bradbury, mais jovem, conhecia a guerra pelo rádio ou por meio dos documentários exibidos nos cinemas. Lembrando que “Farenheit 451” saiu originalmente em 1953, sua realidade estava mais próxima do fantasma do “macartismo”, a caça às bruxas que o senador Joseph McCarthy liderou contra supostos comunistas infiltrados na sociedade americana. Sob o pretexto de que os soviéticos tomariam o poder, incentivava cidadãos a vigiar e denunciar seus vizinhos e colegas. A conduta teve grande impacto na sociedade americana, principalmente no cinema, onde diretores e roteiristas foram perseguidos e impedidos de trabalhar. O vírus do totalitarismo tentava se instalar nos EUA, mas a democracia americana o repudiou. Bradbury captou esse zeitgeist como ninguém. Mais tarde, adaptou o medo e focou em histórias de terror e ficção científica que se tornaram populares, como “Algo Sinistro Vem Aí”, de 1962, ou “A Morte é uma Transação Solitária”, de 1985. Apesar de o escritor ter morrido em 2012, aos 91 anos, o sucesso de suas histórias em todo o mundo – ele vendeu mais de 20 milhões de exemplares em sua carreira – é a maior garantia de que sempre haverá pessoas lutando em defesa dos livros. Apesar dos fantasmas autoritários, que, de tempos em tempos, continuam a nos assombrar.