Em uma trajetória que abrange experiências em entidades acadêmicas, governamentais como formulador de políticas econômicas e como executivo de grandes instituições financeiras, Marcos Lisboa é um economista multifacetado, que atua em diversas áreas e tem por regra não falar sobre conflitos envolvendo personalidades públicas, mas anima-se a discorrer quando o tema é a política fiscal e a economia de um modo geral. Muitas pessoas o conhecem como presidente do Insper, cargo que acabou de deixar depois de dez anos à frente de um dos maiores complexos de ensino superior do País. Mas, o que poucos sabem é que ele teve uma participação fundamental no primeiro governo de Lula, eleito em 2002. Ele atuou como secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda de 2003 a 2005, compondo o time que tinha Henrique Meirelles, Alexandre Schwartsman, Antonio Palocci, Joaquim Levy e Murilo Portugal. Em entrevista à ISTOÉ, Lisboa deixou claro que é cético sobre o rumo da política fiscal do atual governo e explica que para o Brasil deslanchar é preciso fazer “o dever de casa” e não agir por impulsos, com a adoção de ideias criativas e sem comprovação de sua eficácia. Defensor das reformas, ele é sucinto: “Temos um sistema tributário caótico.”

O sr. está otimista com a nova proposta de âncora fiscal? Acha que poderá substituir o teto de gastos e impedir a explosão da dívida?
Acho que o debate público no Brasil se apega a algumas medidas meio mágicas e acaba esquecendo o problema de fundo. Quando se compara o Brasil a outros países, considerando o que a gente gasta, os resultados são bem piores do que aquilo que vemos nos outros lugares. Você tem uma confusão de políticas públicas desencontradas nas diversas áreas. Vamos pegar o tema do desenvolvimento regional. Tem os fundos institucionais, tem a Sudene, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) e tem uma quantidade impressionante de recursos destinados para essas áreas, só para dar um exemplo. E, no entanto, os resultados são muito ruins. Quando se cria uma política no Brasil, você não avalia e não faz gestão, só cria a política. Então, você vai ter um Estado muito inchado, que vai crescendo, mas, na hora que o País está bem, essas políticas são infladas e não são avaliadas. Geralmente são ineficazes. E aí você vai criando um problema fiscal e, então, tem que se inventar truques para conseguir controlar o gasto público gerado por essas ideias. A nossa política econômica está tentando achar a solução, tratando apenas do sintoma e não da doença em si. Acho que essa será mais uma dessas medidas costumeiras que vem por aí.

A ministra do Planejamento, Simone Tebet, afirmou que o novo arcabouço fiscal, que substituirá o atual teto de gastos, vai agradar a todos, inclusive ao mercado financeiro. Acredita nessa afirmação?
O primeiro passo é saber se está se enfrentando a ineficiência da administração pública ou se é só mais uma fórmula mágica de limitar dívida assim ou assado. O brasileiro gosta de fazer esses anúncios imediatos sem fazer o dever de casa antes. Não gosto de comentar antecipadamente, mas sou muito cético. Sem rever as políticas públicas do Brasil, vamos repetir os erros do passado.

Como os investidores estão olhando o momento político-econômico atual, principalmente diante das declarações do presidente Lula sobre o Banco Central e o braço de ferro entre o PT e o Ministério da Fazenda?
Acho que as pessoas reagiram ao governo Lula com muita boa vontade. É claro que o governo anterior, em temas que são importantes para a sociedade, como o meio ambiente e cuidado com as minorias, foi desastroso. Um governo que alienou muitos parceiros do Brasil e gerou uma grande má vontade contra o nosso País. O novo governo veio com o sinal trocado nessa área, o que é ótimo. Acho também que quando você analisa à distância, o Brasil é um País que tem um grande mercado consumidor, um País que não cresce direito há décadas, mas tem um enorme potencial. Tem sucesso com um relativo Estado Democrático de Direito e, à distancia, parece que as discussões são bastante elevadas. Então, é um País convidativo para investimentos. O problema é quando se olha de perto. Aí a questão é bem mais complicada, porque a gente vê um Estado deficiente. Temos um sistema tributário caótico. Tudo bem querer tributar mais os ricos? Ótimo. Mas é preciso entender a tributação brasileira em detalhes. A gente faz o contrário do que os demais países fazem. Mas, a gente não quer entrar nesse detalhe. Queremos ficar na discussão mais superficial e acabamos caindo nesses descontroles de gastos.

Há espaço para a Selic baixar este ano? Isso depende mais do governo ou do BC?
Se não fosse a traquinagem dos combustíveis do ano passado, a inflação estaria quanto agora, em 9%? A inflação corrói a vida das pessoas e prejudica os mais pobres. Tem alguma maneira de se combater a inflação com juros menores? Claro que tem. É só fazer uma política fiscal melhor. A gente viu isso no governo Temer. Quando ele assumiu, e em poucos meses aprovou o teto de gastos, a taxa de juros estava acima de 14% naquele momento. As taxas longas estavam um pouco maiores. Quando se aprovou o teto de gastos, as taxas diminuíram rapidamente e o Banco Central começou um processo de reduzir os juros. Com isso, a inflação foi baixando. Então, se reduziu a inflação, que estava em mais de 14%, para pouco mais de 6% em poucos meses. Agora, no ano passado foi um descontrole total. Um volume enorme de gastos contratados para 2023 e teve a PEC da Transição que adicionou mais combustível. Não é fácil combater a inflação. Agora, não adianta demonizar a política fiscal. A política fiscal expansionista, que é essa captura do patrimonialismo de benefícios para o setor a, b ou c, ela é ecumênica, não tem viés ideológico. É apoiada pela esquerda e pela direita.

Como assim?
Todo mundo apoia essas medidas expansionistas. Tanto que algumas delas, ou melhor, várias delas aprovadas no governo Bolsonaro, receberam o apoio, em sua grande maioria, da esquerda. O Banco Central aqui está cuidando para que a inflação não saia de controle. Então, a culpa é da política, do governo e não do Banco Central. Como lidar com isso? Você tem que fazer o dever de casa, cuidar do fiscal e avaliar as políticas públicas. De novo, você não deve descuidar do social, pelo contrário, você tem de cuidar de fato do social, mas fazer uma avaliação dos impactos dos programas sociais, por exemplo. Se eu quero cuidar do social, tenho que olhar o que funciona melhor e qual é o impacto para a sociedade. A gente está fazendo melhor uso do recurso público ou a gente só está jogando para a platéia, apenas com frases de efeito? Sem avaliação do impacto, e gestão dos recursos, nada vai funcionar.

Lula propõe voltar a apoiar setores que não deram certo no passado, como a indústria naval. Faz sentido uma política de reindustrialização do governo?
Industrialização não é questão de ser contra ou a favor. O problema é que se acaba confundindo industrialização com a velha manufatura, que, em geral, é ineficiente, e você acaba subsidiando fábricas que são improdutivas. Os países que tiveram processos bem sucedidos nesse setor tinham todo um trabalho como: desenvolver capital humano, obter tecnologia e saber exatamente como é que vai ser a governança do setor e quais mecanismos serão adotados para garantir o aumento da produtividade. Enfim, aqui a gente não faz nada disso. O Brasil simplesmente anuncia um programa bacana, distribui subsídios de roldão e o que se gera com tudo isso? Na maioria dos casos, leva a fábricas ineficientes.

A mudança na lei das estatais pode abrir espaço para o aparelhamento político?
Usualmente no Brasil os recursos públicos, das estatais em particular, são capturados por interesses paroquiais. As pessoas querem diretoria tal para ajudar determinado grupo, para servir a alguns interesses paroquiais, mas nem sempre são atos republicanos. Não é questão de se demonizar a política, mas é a forma de reconhecer como os outros países enfrentaram a questão. É preciso ter uma governança muito bem estabelecida para evitar a apropriação do Estado por esses interesses paroquiais. Os Estados Unidos passaram por isso em meados do século 19. Havia uma quantidade impressionante de corrupção, captura do Estado por interesses localizados e grandes empresas solapando a área social. E, ao longo de décadas, foi se criando mecanismos legais de como se pode nomear o setor público e como que se regula grandes grupos organizados. Foi se criando uma governança para garantir que o Estado, de fato, não está sendo capturado por interesses particulares, mas sim está servindo para o bem comum. Essa é uma agenda que não termina e é de aperfeiçoamento contínuo. A gente não faz isso aqui.

Por quê?
No Brasil, com o discurso de que isso restringe os atores da política, você acaba permitindo essa captura do Estado. E, assim, o País acaba caindo no oportunismo de curto prazo, o que dificulta o crescimento. Aliás, o Brasil faz muito esforço para ser um País pobre. Temos um potencial imenso. Infelizmente, estamos atrasados em portos, rodovias e logística, mas não tem jeito. Como vamos ter bons investimentos aqui com esse oportunismo que é típico do nosso modo de agir, de intervir nos contratos, contando com a complacência não só do Executivo, mas também do Judiciário?

O governo paralisou a privatização do Porto de Santos e ameaçou mexer no marco do saneamento. São retrocessos?
A gente gosta de grandes anúncios, que dão manchete de jornal, a favor do marco do saneamento, por exemplo. Privatizar ou não privatizar? E a gente não faz o dever de casa direito, que é o seguinte: não interessa se é público ou privado. O que interessa é como você vai garantir portos eficientes e quanto custa o transporte na maioria dos portos no resto do mundo. Qual é o desenho regulatório que tem nos Estados Unidos, na França, na Holanda, no Chile, enfim, o Brasil não faz isso. A gente só gosta da bravata. Agora, trabalhar de verdade, fazer política pública de verdade, com os protocolos seguidos por outros países, ter relatório de impacto, a gente não faz. As pessoas têm ideias criativas, muito superficiais e se faz políticas públicas com uma irresponsabilidade muito assemelhada ao que fez o governo passado na condução da pandemia. É impressionante como essa superficialidade é um debate vocal com poucas palavras-chaves: Ah, você é liberal ou estadista? Ah, você é a favor da privatização ou é a favor das estatais? Fica-se nesse debate muito superficial e acaba-se usando remédios como a cloroquina como política em geral.