Quando os pais anunciam que vão viajar, os filhos já compreendem o que mais interessa: a casa vai ficar livre só para eles. Pais e filhos desejam privacidade, sossego e liberdade, mas essas condições nem sempre são compatíveis com a tumultuada vida em família. Uma das soluções é repensar o convívio: de um lado, jovens adultos que encontram cada vez mais empecilhos para realizar o sonho da casa própria, em razão de fatores como o desemprego ou a crise econômica. Do outro, homens e mulheres, com mais de 50 anos, que não querem calçar os chinelos da aposentadoria e ainda sonham em viver novas experiências. Há cada vez mais famílias que invertem a ordem considerada natural: são os pais que saem de casa, deixando as residências para seus filhos.

“Não incluí meus filhos nos meus planos, mas eles não reclamaram. Apoiaram minha decisão” Alex Lucena, empreendedor, 54 anos (Crédito: Keiny Andrade)

Foi o que aconteceu com o carioca Alex Lucena, de 54 anos, CEO de uma aceleradora de negócios que trabalha com inovação e empreendedorismo ligado à indústria da Cannabis. A empresa foi montada em São Paulo, onde residem os demais sócios. Até o ano passado, ele morava no apartamento na Zona Sul do Rio de Janeiro, com os dois filhos universitários, Bruna, de 23 anos, e Pedro, de 21, e a mulher, Fernanda, de 48. No momento que a aceleradora recebeu novo aporte de capital, Lucena percebeu que precisava estar presente fisicamente na sede da empresa. Ele conversou com a mulher e os dois fizeram as malas para São Paulo. Os filhos ficaram no apartamento da família, com toda a estrutura montada. “Não incluí nenhum dos dois nos meus planos, mas eles não reclamaram. Apoiaram minha decisão”, diz Lucena. “Quero continuar empreendendo até o fim dos meus dias”. Quanto à mudança para a capital paulista, ele diz que “é uma das melhores fases” de sua vida. Dá para entender. Ao mesmo tempo em que abriu espaço para os filhos viverem como querem, permitiu que os novos ares chegassem à relação conjugal. “Sou casado há 26 anos. Eu e minha mulher aproveitamos para voltar a namorar e brincar de casinha.” Lucena reclama que, à medida que os filhos cresceram, eles começaram a enquadrá-lo tanto na forma de se expressar como na de agir. “Sou da época dos Trapallhões, um tipo de humor que permite piadas politicamente incorretas. Meus filhos são caretas.”

Sempre houve discussão sobre a diferença entre a cultura brasileira e americana no que se refere a idade em que os jovens abandonam a casa dos pais. Enquanto os americanos costumam partir no momento em que entram para a faculdade, os brasileiros têm o costume de esperar ao menos o fim da graduação ou a conquista de um emprego estável para fazer o mesmo movimento. “Hoje em dia, o diploma de uma boa faculdade não garante uma vaga de emprego”, diz a psicanalista Lídia Aratangy. Os filhos continuam na casa dos pais mesmo adultos e, para manter a privacidade, desenvolvem esquemas característicos – transformam o quarto em um bunker, com tudo que é necessário para sobrevivência ao longo dessa fase, o que inclui namoradas ou namorados. “Os filhos não sabem o que fazer com os pais, nem qual o lugar que possuem na vida deles”, diz Lídia. “Ao sair de casa, os pais estão rompendo esse ciclo, o que pode levar ao relacionamento mais simétrico entre eles.”

Quem sai de casa e deixa os filhos, porém, não passa ileso – ao menos, das críticas do restante da família, que fica entre a extrema preocupação sobre a segurança dos jovens e a crítica velada de achar um absurdo os pais partirem sem a prole. “Minha mãe não entende como deixei meu filho em São Paulo e mudei para Curitiba, mas sempre achei que precisamos criar os filhos para o mundo”, diz o economista Floriano Gardelli Filho, de 58 anos. Em maio, ele desmontou a casa onde morou por 11 anos, com a mulher, Claudia, de 48 anos, e o filho do segundo casamento, Nicolas, de 20, em Alphaville, em São Paulo. O motivo: um novo emprego na capital paranaense. Com o dinheiro da casa, alugou um estúdio mobiliado para Nicolas próximo à Faculdade de Administração do Mackenzie, na região central da capital paulista, onde estuda, e comprou uma casa em Curitiba, para onde se mudou.

“Quando a família tem certeza da base que deu aos filhos, não há o que temer” Luciana Pinheiro Bucolo, vitrinista mineira, 46 anos (Crédito:Keiny Andrad)

O casal Gardelli queria mais qualidade de vida, mas tinha a preocupação de o filho ter sido criado em um condomínio fechado como Alphaville, longe dos problemas reais de uma metrópole. “Não estou mais tão perto para protegê-lo, mas temos o WhatsApp, que ajuda muito no contato”, diz Gardelli, mais tranquilo ao perceber que a separação geográfica fez bem ao filho. “Nicolas, que sempre deu trabalho na escola, agora é super responsável. Eu pago o aluguel e a faculdade, ele custeia as outras despesas com o próprio trabalho.” Gardelli conta que o filho aprendeu a dar mais valor às coisas. “Quando vamos a São Paulo, ficamos sempre hospedados no estúdio dele. Se deixo o ar-condicionado ligado por mais tempo, ele reclama que a conta vai ficar cara. Isso não acontecia quando Nicolas morava em casa.” Uma semana antes do Carnaval, Gardelli ligou para o filho e o convidou para passar o feriado em Curitiba, pois os pais estavam com saudades. Nicolas, porém, preferiu viajar com os amigos para a Riviera, no litoral norte de São Paulo. E ainda emendou: “Você deveria ficar preocupado se eu dissesse que iria passar o Carnaval com os meus pais.”

Coragem maior foi a do casal de vitrinistas Luciana Pinheiro Bucolo, 46 anos, e Alfredo Bucolo, de 56. Antes da pandemia, os dois compraram um terreno em Arraial D’Ajuda (BA). A ideia era construir uma casa e um galpão, para onde pretendiam transferir a marcenaria que possuem hoje na Zona Norte de São Paulo. A especialidade dos dois é montar vitrines de lojas de moda, e a maior clientela sempre foi o comércio do Brás. Com a pandemia, porém, os negócios minguaram. Com um patrimônio já construído – que compreende dois apartamentos, a marcenaria e o terreno na Bahia –, os dois resolveram colocar em prática o sonho de empreender em Arraial D’Ajuda. “A vida é muito dura em São Paulo. Não vale a pena”, diz Luciana. No último domingo, ela fez um almoço de despedida para os filhos, Gabriela, de 23 anos, que estudou sete anos de música (piano) e hoje cursa a Faculdade de Geografia da Universidade de São Paulo, e Enzo, 21, que atualmente serve o Exército. “Eles não quiseram ir com a gente”, conta Luciana. “Mas não estou preocupada. Quando a família tem certeza da base que deu aos filhos, não há o que temer. Se fizerem alguma coisa errada, será uma escolha consciente.”

O sonho de morar sozinho

“A mudança da minha mãe foi como um alinhamento de interesses” Luís Felipe, trainee, 25 anos (Crédito:Keiny Andrade)

Formado em marketing, Luís Felipe de Faria e França, 25 anos, sempre quis viver sozinho. Filho de pais separados, ele morava com a mãe em um apartamento de 150 m2 na Vila Clementino, em São Paulo. Alimentava o sonho de independência desde a adolescência, quando equipou o próprio quarto como se fosse um mini-apartamento. Quando se formou no colégio Dante Alighieri, o namorado da mãe apresentou uma proposta de casamento e o plano de se mudar para Portugal, na região de Algarve. “Eu dei a maior força. Senti aquilo como um alinhamento de interesses”, conta Luís, na época com 20 anos.
Era uma proposta nova para os dois. Ela não conhecia nenhuma mãe que havia deixado o filho para se casar, nem ele sabia de nenhum amigo que havia conquistado a independência desse jeito. “Eu senti que tinha de fazer tudo certo. Precisava ir bem na faculdade. Também não queria que ela ouvisse reclamações dos vizinhos. Até porque, se eu não andasse na linha, sabia que ela voltaria correndo para o Brasil.” Aos poucos, Luís transformou a casa. A mesa de jantar deu lugar a uma de pingue-pongue. Um saco de boxe foi pendurado no meio da sala. A varanda ganhou grama artificial. Ele passou a dormir na suíte principal, que era da mãe. Hoje, Luís trabalha e paga todas as despesas. Dos tempos em que a mãe morava ali, sobrou apenas a auxiliar doméstica. “Mas agora sou eu quem faz as compras e escolho o que quero comer.”