Para aprofundar a discussão sobre a formação da cidade de São Paulo, o artista Jaime Lauriano criou imagens que se desmancham à medida que se desce pelas escadarias do Beco do Pinto, no centro histórico paulistano. O espaço fica entre dois casarões do século 19 – o Solar da Marquesa e a Casa nº 1, que fazem parte do Museu da Cidade. O trabalho será aberto à visitação neste sábado (7).

Os três painéis instalados no local trazem reproduções do Panorama da Cidade de São Paulo, pintado por Arnaud Julien Pallière, em 1821, com intervenções propostas pelo artista. O quadro mostra a paisagem da região da antiga Rua do Carmo, onde fica o Beco do Pinto, à época. “Nada mais é que uma vista do outro lado do rio Tamanduateí, no século 19, olhando para cá”, diz Lauriano, ao apontar para uma caixa d’água no horizonte, onde antes era a margem do rio, atualmente canalizado e coberto por concreto e asfalto.

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“Então, você tem a várzea do Carmo, você tem o Convento do Carmo, você tem todo um landscape [paisagem] dessa parte do centro de São Paulo, vista de lá, que era periferia à época”, detalha o artista sobre o que é possível ver no afresco original.

Jaime Lauriano apresenta as obras que fazem parte do Panorama da Cidade de São Paulo – Rovena Rosa/Agência Brasil

Militares e bandeirantes

Para os trabalhos, Lauriano removeu as figuras humanas que também faziam parte da composição e inseriu, em uma montagem, personagens de diversos momentos da história do país. Aparecem montados em cavalos, Dom Pedro I, o general João Figueiredo, o ex-governador paulista João Doria, policiais militares e bandeirantes. “Eu vou adicionando também alguns elementos que fazem parte da minha gramática visual, que são desenhos feitos com pemba, que é esse giz usado nos rituais afro-brasileiros”, explica Lauriano “Aqui, eu desenhei três caças da FAB [Força Aérea Brasileira]e adicionei palavras, como genocídio e invasão”, completa sobre as intervenções em um dos painéis.

Imagens que se desmancham

As imagens, no entanto, foram construídas com uma estratégia usada para outdoors, dividida verticalmente em prismas, de modo que, ao olhar o painel em outro ângulo, há uma outra figura no lado inverso. Essa montagem também faz com que a imagem mude à medida que a pessoa se movimenta pelo espaço. “A partir do momento que você vai andando, ela [imagem] vai se destruindo e vão se revelando os tridentes de Exu desenhados com pemba. Então, se você vir nesse outro ponto de vista, você já não vê mais nenhuma imagem colonial”, mostra.

Para quem sobe as escadarias, são visíveis inicialmente os símbolos que remetem a Exu, orixá cultuado pela umbanda e candomblé. “Ele é o primeiro orixá, porque o criou vazio. Dentro da cosmologia iorubana, se você não criar o vazio, você não consegue criar nada”, explica o artista sobre a escolha. “A gente não vai apagar e não vai esquecer essa história, só que nesse movimento decolonial [de enfrentar o pensamento colonial], a gente vai criar um vazio para a possibilidade de criação de outra história”, acrescenta.

Apagamento

A proposta surgiu a partir de um incômodo do artista com o apagamento da história da cidade anterior a década de 1920. “A gente anda pelo centro de São Paulo e não vê quase nenhuma referência ao período de colonização, de escravização e ao período de independência também, antes de 1920. E, aqui, é um lugar desses que a gente tem a memória do período colonial brasileiro”, comenta Lauriano, que fez o trabalho a pedido do museu municipal que funciona no espaço.

O local, que fica ao lado do Pateo do Collégio e próximo a Praça da Sé, marcos de origem da capital paulista, é também por onde passava a rota usada por povos indígenas antes da invasão, chamado de Caminho do Peabiru. “O Beco do Pinto fazia parte do Caminho do Peabiru e a gente esquece. Isso não é um dado conversado em museu nenhum, centro cultural nenhum”, enfatiza.

Samba e hip hop

Os painéis devem ocupar o beco até julho de 2024. Para que a obra suporte a exposição ao sol e a chuva, Laureano se baseou nas estratégias de construção popular e optou por estruturas metálicas. “É o mesmo zinco usado em barracão de escola de samba e banca de jornal. Usar esse tipo de material informa também essa ideia de ostentação, de uma arquitetura colonial, que está nas imagens, em contraste com a popular”, diz.

A inauguração do trabalho será feita por um cortejo, performado pelo Coletivo Legítima Defesa, com saída da Praça da Sé, às 15h. Ao longo do período de exposição, serão realizados ainda eventos com grupos de pagode, samba e hip hop.