O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), trouxe à tona na terça-feira, 21, uma vontade antiga: medidas de internação compulsória de usuários de drogas no município. Ao lançar a ideia e jogar no colo do secretário de Saúde, Daniel Soranz, a construção do plano, profissionais da saúde mental e integrantes do Legislativo se manifestaram sobre a medida, considerada higienista e que dá um start nos recados para a campanha de busca pela reeleição do prefeito em 2024. 

Apesar de Paes não ter dado mais detalhes sobre o destino dos usuários de drogas da cidade, o Ministério Público Federal se manifestou a respeito, colocando-se contra a internação compulsória desses usuários em unidades terapêuticas no município. Na nota técnica, o órgão alerta para a inconstitucionalidade da medida. 

Entende-se por internação compulsória a política de ‘retirar das ruas da cidade aquelas pessoas usuárias de drogas que se recusem a, voluntariamente, submeter-se a tratamento”. Sendo assim, seria uma privação de liberdade do indivíduo, contrariando o Art. 5º da Constituição Federal. 

A IstoÉ conversou com Céu Cavalcanti, psicóloga presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, sobre o assunto. A especialista salienta que a medida de internação nesses moldes, assim como reforça o MPF, deve ser temporária, voluntária e associada a políticas da assistência social e a rede de atenção psicossocial. 

“Uma das possibilidades de cuidado pensado, enquanto o cuidado na Rede de Atenção Psicossocial em serviços da saúde mental e para a política sobre drogas e substâncias ilícitas, a última delas seria de uma internação rápida. E assim, temporária, de quando há um abuso bem mais severo [da substância]”, explica Céu. 

Ela acrescenta que a internação só seria acionada quando todas as outras medidas, como encaminhamento para Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas (CAPS AD), acionamento da rede territorial e composição de um plano individual de acompanhamento junto à família da pessoa, fossem acionados.

“Quando tudo isso, que é previsão do nosso modelo de Saúde Mental, do modo como a gente desenhou depois da reforma psiquiátrica, se esgotasse, aí teria essa previsão construída de forma singular a partir da história de cada indivíduo”. Na possibilidade da pessoa não conseguir responder, é feita “junto com quem responde por ela” quem é responsável por ela legalmente, “inclusive, e entendendo também que isso seria o mais curto possível, o mais temporário possível e que rapidamente essa possibilidade voltaria um passo atrás e a pessoa voltaria a ser acompanhada pelo CAPS, especialmente pelo CAPS AD”, reforça Céu. 

Os CAPS seriam como Unidades Básicas de Saúde, conhecidos pontos de atenção social e de saúde, gratuitas e com funcionamento de atendimento do SUS, mas com foco em tratamento e acolhimento da saúde mental. As unidades, segundo o Ministério da Saúde, “prestam serviços de saúde de caráter aberto e comunitário, constituído por equipe multiprofissional que atua sobre a ótica interdisciplinar e realiza prioritariamente atendimento às pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, em sua área territorial, seja em situações de crise ou nos processos de reabilitação psicossocial”.

CAPS ad Álcool e Drogas:  Atende pessoas de todas as faixas etárias que apresentam intenso sofrimento psíquico decorrente do uso de crack, álcool e outras drogas, e outras situações clínicas que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida. Indicado para municípios ou regiões de saúde com população acima de 70 mil habitantes (Fonte: Ministério da Saúde).

Além de reforçar em qual situação tal política pode ser adotada, a nota do MPF registra que a internação só pode ser feita após “avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o padrão de uso e na hipótese comprovada da impossibilidade de utilização de outras alternativas terapêuticas disponíveis na rede de atenção à saúde”. Segundo a presidenta do CRP-RJ, há poucos centros dessa modalidade no município. 

“Um exemplo importantíssimo, o centro do Rio de Janeiro não tem CAPS AD, nenhum. A Lapa seria hoje um lugar estratégico para ter um CAPS, porque a Lapa concentra um número muito grande de pessoas em situação de vulnerabilidade social que fazem uso desorganizado [de drogas]”, argumenta Céu. No site da prefeitura do Rio, a lista de Centro de Atenção Psicossocial mostra seis endereços da modalidade Álcool e Outras Drogas – nenhum deles com endereço na região Central da cidade. 

Segundo o Censo de População de Rua 2022, organizado pela Prefeitura do Rio, há 7.865 pessoas em situação de rua na capital fluminense. Houve aumento de 8,5% em relação a 2020, quando foram contabilizadas 7.272 na mesma condição.

“Para onde então que vão mandar? Para qual tratamento? Que tipo de lugar vocês vão mandar as pessoas? Isso não foi dito, então nos preocupa também. Porque além de ser essa lógica de remoção, por tabela ainda parece ser uma atualização da lógica manicomial”.

Desde 2011, a Lei da Reforma Psiquiátrica proíbe internações compulsórias e exige alternativas aos manicômios. A construção de atendimento social com CAPS é uma delas. 

Paes ‘higienista’

Outro ponto trazido pelo MPF, que assina a nota técnica com a Defensoria Pública da União, é que a política de Paes é higienista, ou seja, que reforça o pensamento de tirar das ruas e espaços públicos todo aquele que é ‘indesejado’ ali, pregando ‘higiene’ na sociedade. Isso tira também a liberdade dos indivíduos presentes nas ruas da cidade, que tem raça e cor predominantemente negra. No Censo municipal de 2022, 84% das pessoas são autodeclaradas pretas ou pardas.

“Não vou deixar o Rio ‘se transformar num centro de São Paulo, numa Cracolândia’”, disse o prefeito ainda esta semana, durante evento do Cais do Valongo, fazendo comparação com a área da capital paulista ocupada por população de rua.

Em 2013, quando Paes estava no último ano da primeira gestão municipal do Rio, o Ministério Público do Rio (MP-RJ) moveu ação contra internação compulsória adotada pela prefeitura, e chegou a pedir a suspensão das funções públicas do politico. Na época, a gestão municipal foi acusada de retirar das ruas pessoas que não eram usuárias de drogas.

“O que é ventilado é usar da força para remover as pessoas desses lugares, basicamente. Se não é nem ventilada a possibilidade de cumprir as medidas de atenção psicossocial a partir do cuidado singular com cada pessoa, a gente pode ter a hipótese de que o que está sendo proposto, por exemplo, é uma lógica de higienização”, afirma Céu.

“Nos preocupa também, além da violação de direitos e de todo esse absurdo de desumanização, de não tratar essas pessoas como humanas, como gente que tem vontades e que está num processo de estabelecimento, mas que precisa construir ativamente sua própria vida, construir ativamente seu próprio desejo. Isso não está sendo considerado em momento nenhum. Por isso que essa lógica de ‘vamos tirar todo mundo de uma vez só’, ‘vamos remover todo mundo de uma vez só, usando essa cláusula, ela não cabe’. Me parece muito mais uma cláusula populista que não resolve um problema, pelo contrário, agrava e que violenta a gente, que já é vulnerável”, reforça Céu.

A vereadora Luciana Boiteux, que atua como advogada no julgamento sobre a descriminalização de drogas que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), também criticou o anúncio do prefeito. 

Ele apresenta uma política, na verdade, a gente sabe o que é, uma política para limpar as ruas. Uma política higienista e que não está direcionada para proteger as pessoas que precisam de um tratamento, mas sim para criar espaço na cidade de recolhimento de pessoas nas ruas. Então, isso envolve não só direitos das pessoas que usam drogas, mas também direitos de pessoas que moram nas ruas. É uma cortina de fumaça porque ele quer encobrir o real problema da rede de atenção à saúde mental no município do Rio de Janeiro”, defende. 

Luciana registra também a decisão do STF, relatada pelo ministro Alexandre Moraes em agosto deste ano, que proíbe remoção forçada de pessoas em situação de rua. “É uma decisão que reafirma isso, ou seja, proíbe essa política de remoção e de internação para a população de rua. É possível, eventualmente, uma internação contra a vontade do sujeito? Sim, ela é possível, mas ela só bem que se aplica em casos extremamente restritos. Nesse caso é preciso sempre de um laudo e médico autorizando e recomendando”, finaliza.

Segundo a vereadora, outros nomes do PSOL na Câmara Municipal do Rio estão se articulando para chamar audiência pública sobre o caso.

O que diz o Secretário Municipal de Saúde

Em entrevista para a IstoÉ, o secretário municipal de saúde, Daniel Soranz, afirmou que a medida deve ser implementada no 1º semestre de 2024, logo nos primeiros meses do ano. “A gente acredita que precisa fazer essa intervenção nesses casos principalmente em que a gente acompanha o paciente ao longo do tempo e vê que ele evolui a óbito ou situações muito graves, que colocam em risco sua vida ou a vida de outros”, disse.

Segundo Soranz, a internação compulsória deve acontecer para indivíduos que já estão em acompanhamento pela saúde mental do Rio ou já cadastrados em programas de atenção básica. O principal deles seria o Consultório de Rua, com 11 mil cadastrados no municípios, e 130, destes, em acompanhamento mais específico.

Questionado se a medida vai abordar pessoas em situação de rua que estão fora do acompanhamento de saúde e do cadastro, o secretário afirmou que “pode ser, mas isso é uma exceção”. O secretário garantiu também que toda a medida deve ser realizada com acompanhamento de profissionais de CAPS, e ressaltou a ação das residências terapêuticas na cidade.

Sobre locais e tempo de duração da internação, Soranz adiantou que a prefeitura “está estruturando esse serviço junto as unidades hospitalares nossas e utilizando a rede de CAPS”. “Ninguém está falando sobre internação longa, são internações curtas em momento de crise. Essa internação é para cuidar do paciente em momento agudo e de crise, estabilizá-lo e garantir que ele possa ter acompanhamento depois adequado para cada perfil”, garantiu, afirmando que cada caso será acompanhado de maneira individual.