A água veio como se saísse do Velho Testamento naquele julho de 1975, quando o Rio Capibaribe ficou pequeno para receber tudo o que caía do céu e arriou, fazendo virar rio também bairros como Casa Forte, Madalena, Torre, Cordeiro, Derby, Graças, Iputinga e mais de 80% da zona habitada do Recife. A submersão levou 107 vidas, destruiu casas, isolou sobreviventes e adentrou portas e janelas de um edifício no irônico bairro de Afogados para deixar máquinas de fazer vinil, fitas, cópias de LPs e uma lenda de mil anos aprisionada por dois nordestinos a 2 metros debaixo d’água.

“É aqui, a pedra está viva!”, disse Zé Ramalho um ano antes da tragédia e a muitos quilômetros de distância, depois de muito caminhar em expedição movida a crenças e cogumelos com o amigo músico Lula Côrtes em direção à Pedra do Ingá, no interior da Paraíba. Zé e Lula caçavam um passado anterior aos colonizadores e aos colonizados, mais precisamente referente ao líder Sumé, a entidade mitológica em que os indígenas acreditavam antes da colonização.

Queriam ver a pedra, sentir os seus sinais, tocar as marcas de seres e astros desenhadas ali e saber mais do Caminho da Montanha do Sol, ou o Caminho do Peabiru, uma passagem terrestre que ligava a civilização inca de Machu Picchu à Paraíba de Zé Ramalho.

Zé e Lula Côrtes se embrenharam por dias naquela mata e voltaram como se tivessem sido transpassados pela própria luz. Seguiram para os estúdios semidesativados da Fábrica de Discos Rozenblit, que havia vivido dias de glórias nas duas décadas anteriores, e começaram a criar. “Foi o disco mais livre da história da música brasileira”, diz o jornalista, escritor e pesquisador pernambucano Zé Teles. “Ninguém tinha tanta liberdade para gravar como eles tiveram.” A saga que queriam contar merecia um grande investimento.

Um álbum duplo, sendo cada um dos quatro lados inspirados por um dos quatro elementos da natureza. No lado do Ar, entraram mais os sopros leves das flautas. No da Terra, a percussão assumiu a frente em batuques e divisões indígenas. O Fogo trouxe as guitarras e a Água, simulações de cascatas com cacimbas, por exemplo. “Na abertura do lado Água, a gente procurou um pai de santo para cantar um ponto belíssimo de Iemanjá”, disse Zé Ramalho em rara entrevista sobre o disco ao jornal International Magazine, em 1998.

Um álbum que surgiu sobre uma pedra e quase acabou levado pelas águas do Capiberibe se sobrepôs, com todo respeito, ao próprio Sumé para se tornar ele mesmo a lenda. As cerca de 300 cópias sobreviventes viraram cálices sagrados com o tempo e chegaram a ser cotadas, cada uma, a R$ 4 mil. Isso até hoje, quando a fábrica de vinis Polysom recoloca o álbum nas lojas em uma edição respeitável, com o som extraído não de cópias, mas do master que, como diz a biógrafa de Zé Ramalho, Christina Fuscaldo, não chegou a ser levado pela enchente de 85, ao contrário do que se acreditou por muitos anos. “No dia da enchente, eles conseguiram colocar algumas fitas originais nas prateleiras de cima e a de Paêbirú estava entre elas.”

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A pergunta que já deve estar na cabeça dos fãs é respondida por João Augusto, consultor da Polysom. Não, o disco não vai custar R$ 4 mil. “É um álbum duplo, em 180 gramas, um projeto gráfico que respeita o original e é diferente dos formatos comuns. O preço sugerido é de R$ 250 contra os R$ 200 de um disco duplo normal.” Rafael Ramos, produtor musical e também consultor da fábrica, fala do álbum. “O Paêbirú representa o experimentalismo na fase seminal desses dois artistas, antes de virem pro Sudeste trabalhar suas carreiras junto a produtores e gravadoras. Então, é a música em seu estado mais puro, sem obrigações, seguindo o que se sentia.”

Zé Ramalho não dá entrevistas sobre o disco. Sua mulher, Roberta Ramalho, respondeu que ele não falaria sobre o assunto, sem mais detalhes. Lula Côrtes morreu em 2011, vítima de um câncer na garganta. O silêncio de Paêbirú – um nome que não é poupado de maldições: o certo é Peabiru, algo como caminho para o Peru, mas quem grafou no disco trocou as vogais – só reforça o ciclo de lendas que parecem alimentar o mito. Zé já contou a razão do seu silêncio.

“Ele diz que não fala porque quando precisou de divulgação, nos anos 1970, ninguém da imprensa falou do disco”, diz Chris Fuscaldo, que prevê o lançamento de sua biografia para o ano que vem.

Outras duas histórias são contadas por fontes anônimas. Zé queria muito relançar a música Não Existe Molhado Igual ao Pranto, de Paêbirú, em 1993, no disco Cidades e Lendas, mas Lula, que precisava liberar a gravação de sua coautoria, teria respondido que só pagando. “Zé ficou muito chateado com isso, mas pagou e rompeu relações com o ex-parceiro”, diz Chris. “Côrtes me disse em uma entrevista que Zé havia ficado chateado porque a capa do disco trazia a foto dele, Côrtes, e a de Zé ficou na contracapa”, diz o jornalista José Teles.

Figura das mais importantes na história, Helio Rozenblit, filho do fundador José Rozenblit, estava no estúdio quando tudo acontecia. “Veio a maior enchente que o Recife e a fábrica já haviam enfrentado. Meu auxiliar técnico, desesperado, tirava a água com um rodo. De repente, um barulho: o muro que circundava o córrego que passava ao lado desabou e uma onda de água veio sobre nós. Corremos para o primeiro andar para nos refugiar e, assim, ficamos nos alimentando de coco e farinha por dois dias até a água baixar.”

A primeira tiragem do álbum se foi, sobrando as amostras entregues aos artistas. “Depois da enchente, conseguimos nos reequilibrar financeiramente e fazer uma nova tiragem.” Como a matriz do primeiro lançamento estava estragada, eles prepararam uma outra matriz com um novo corte do acetato usando uma cópia de backup do tape original, pois não encontrávamos o tape original que foi achado anos depois.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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