A IMAGEM COMO ARMA Viralizado na internet, trecho da performance “La Bête”, exibida no 35º Panorama do MAM, foi instrumentalizado em campanha de difamação

“O Ovo da Serpente”, clássico de Ingmar Bergman de 1977 sobre o levante de intolerância que antecedeu a ascensão do nazismo, está na pauta do dia. O avanço da ultradireita nas eleições na Alemanha colocou o mundo em estado de alerta, mas focos de medo e conflito estão disseminados por todas as partes. No Brasil, o mapa da adversidade se adensou nas últimas semanas com uma sucessão de perigosas tentativas de cerceamento, constrangimento, desqualificação e proibição de exposições de arte e ações culturais.

No início de setembro, integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL) viralizaram imagens e agrediram visitantes da exposição “Queermuseu”, alegando apologia à pedofilia e à zoofilia. As intimidações levaram ao encerramento da exposição no Santander Cultural de Porto Alegre. Uma semana depois, o espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” não pode ser encenado no Sesc Jundiaí em razão de uma liminar judicial que determinou que a peça atentaria contra a dignidade da fé cristã. Em São Paulo, colaboradores e visitantes do Museu de Arte Moderna (MAM) vêm sendo alvo de ofensas, agressões verbais e físicas, desde que foi divulgado em redes sociais a gravação de um trecho da performance “La Bête”, em que uma criança e sua mãe tocam a mão e o tornozelo de um artista, que está nu. A nudez, comunicada previamente ao público, não carregava conotações sexuais. Mas, descontextualizado, o vídeo é instrumentalizado em um campanha de difamação do museu e difusão do ódio.

Com um histórico de excelência na educação cultural do público leigo da arte contemporânea, o MAM vem exercendo com responsabilidade a atividade pedagógica que cabe a um museu. Desde a sexta 29, quando sofreu o primeiro ataque, sua equipe dedica-se incansavelmente a dialogar e prestar esclarecimentos a quem a obra possa ter ofendido. A iniciativa conta com o apoio da maior parte das instituições culturais brasileiras, como a Fundação Bienal, o Goethe-Institut, a Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Museu de Arte do Rio, etc. Além disso, psicólogos consultados afirmam que a divulgação do vídeo nas redes sociais é muito mais agressiva à criança do que a sua presença na performance artística.

PRO LIBERDADE Comunidade artística resiste a onda obscurantista orquestrada pelo MBL (Crédito:Rogerio de Santis/Futura Press)

A difamação também foi o objetivo de vídeo produzido por organização ultraconservadora que circulou na internet, distorcendo o sentido de obras da Trienal Frestas 2017. Em agosto, a exposição já havia sofrido um ataque moralista contra o grafite “Femme Maison”, da artista e ativista carioca Panmela Castro, cuja obra discute questões relativas aos direitos da mulher. “O Sesc Sorocaba, contudo, tem se mantido firme no propósito de oferecer uma programação cultural de qualidade acompanhada de mediação e diálogo com o público e a sociedade. Recebi o apoio integral a meu projeto original”, diz Daniela Labra, curadora da Trienal do Sesc Sorocaba, à IstoÉ.

A viralização de conteúdos manipulados é hoje uma arma letal de disseminação do obscurantismo e da ignorância. “Temos aqui, de um lado, um grupo irracional, que é minoria, e que não quer o diálogo, e uma maioria que está sendo impactada pelas informações”, diz Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, à IstoÉ. “A origem desta crise é o comportamento gerado pelos algoritmos. Com o advento das redes sociais e a dinâmica imposta pelos algoritmos – que colocam em contato apenas aqueles que se afinam entre si – aquilo que eu coloco passa a ser uma verdade absoluta”, continua ele. “Mas os algoritmos estão atravessando a rua e os museus tem que dialogar com isso. O que aconteceu com o Santander e o MAM tem que usado como aprendizado a todos nós”.

Qual o papel dos museus em um país que não prioriza a educação, e que (desin)forma cidadãos avessos ao diálogo? Embora estejam sob a mira de ataques de virulência imprecedente, cabe aos museus e aos agentes culturais a mediação de conflitos e a atuação em torno das grandes questões que incomodam a sociedade. Este é o parecer do ICOM Brasil (Internacional Council of Museums), expresso em um manifesto em favor da liberdade de expressão e em respeito à toda forma de diversidade humana. O mesmo manifesto pontua ainda que “repudia a decisão do Banco Santander de interromper a exposição ‘Diferenças da Arte no Mundo Contemporâneo’”.

“Os pareceres do Ministério Público comprovaram aquilo que nós acreditávamos: as obras da exposição ‘Queermuseu’ não fazem qualquer apologia à pedofilia ou a zoofilia”, disse Marcos Madureira, vice-presidente de comunicação e marketing do Santander, à Istoé. A instituição, no entanto, não pretende voltar atrás na decisão de não reabrir a exposição, que afinal tornou-se a caixa de pandora da violência à cultura.

CONTRA LIBERDADE Órgãos culturais defendem o diálogo sem agressão (Crédito:Nelson Antoine/Folhapress)

“A liberdade é o maior valor da democracia. Agredir funcionários do MAM-SP ou ameaçar destruir a exposição é inaceitável. A arte deve ser livre. Cabe aos gestores informar sobre o conteúdo do que apresentam. E o MAM-SP fez isso”, disse André Sturm, Secretário Municipal de Cultura de São Paulo à Istoé, em clara divergência de opinião com governantes das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Mas divergência não é problema. A diversidade de opinião deve ser cultuada para o amadurecimento da vida social. “A palavra que temos que pensar frente a manifestações raivosas e obscurantistas é responsabilidade. A arte não é o problema. Ela traz a solução”, diz Juliana Braga, gerente de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc São Paulo, ao anunciar a suspensão da liminar que proibia a exibição do espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, na terça feira 3.

Enquanto isso, em Paris, o Museu D’Orsay e o Museu da Orangerie retomaram uma campanha de comunicação que em 2015 viralizou positivamente, mostrando a tela “Femme Nue Couchée”, realizada em 1907 por Renoir, com a aplicação do texto: “Tragam seus filhos para ver gente nua”. O debate a respeito da boa aplicação do estatuto da criança e do adolescente (ECA), do fortalecimento da liberdade de expressão e do comportamento da sociedade sob a influência dos algoritmos é o grande desafio que a sociedade brasileira tem hoje.