O ano era 1760. À época, a capitania de Minas Gerais era a mais rica porção de terra de todo o reino português, por conta da extração do ouro e pedras preciosas em seu território. No mesmo período, o arraial de Vila Rica, atual cidade de Ouro Preto, era um dos mais populosos povoados das Américas – para se ter uma ideia, enquanto por lá viviam cerca de 40 mil habitantes (chegou a ter 80 mil naqueles tempos), a cidade de Nova York, EUA, contava com metade dessa população e o Planalto de Piratininga, atual capital paulista, somava pouco mais de 8 mil pessoas.

A riqueza descoberta entre as montanhas mineiras fez da região uma sociedade urbana próspera e importante politicamente, como uma classe média composta por artesãos, profissionais das minas, comerciantes, militares, artistas, músicos, poetas e intelectuais. “Era uma espécie de Babilônia. Tinha gente de todos os lugares’, afirma o doutor em historiador Alex Fernandes Bohrer. Professor de História da Arte e Iconografia do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), Campus Ouro Preto, e autor de livros como ‘Ouro Preto, um novo olhar’.
Bohrer nos ensina que à época no Arraial de Vila Rica circulavam e viviam pessoas riquíssimas que desfilavam seus trajes importados da França ou confeccionados a partir de gravuras vindas de Paris, que circulavam o mundo numa espécie de primeira globalização visual da história. “Era a primeira universalização de imagens, das formas, das ideias e da moda”, atesta o professor no livro – “O discurso da imagem” -, Editora Chiado Books, Lisboa.

Nesse mesmo período, deu-se também, a partir da final da metade do século 18, o início da estagnação da produção aurífera e a defesa de ideias dos iluministas franceses que acaba por desembocar no surgimento de revoltas como a Inconfidência Mineira, em 1789, um movimento separatista que tinha por objetivo a redução no pagamento de imposto à Coroa e o rompimento com Portugal.

Paisagens Pitorescas

Voltado para esse rico cenário de turbulências, tanto do ponto econômico, como comportamental e político que três jovens cientistas mineiros, coordenados por Bohrer, emergiram durante meses em um projeto batizado de “Paisagens Pitorescas”, uma revisita à história da Ouro Preto a partir do século 18, em uma pesquisa iconográfica de imagens traçadas por viajantes nacionais e do estrangeiro do Arraial de Vila Rica. “A ideia era, e ainda é, fazer uma banco de imagens sobre a cidade durante a ‘Ciclo do Ouro’ no Brasil e o século posterior, em específico na região de Ouro Preto”, conta Alan Rodrigues Guimarães, coautor do trabalho.

Graduando em Conservação e Restauro de Bens Imóveis pela IFMG, Guimarães e outra estudante, com duas míseras bolsas de iniciação científicas, de R$ 400,00, garimparam imagens raras e inéditas desse período. “O projeto vislumbra levantar o material iconográfico e compará-lo com a Ouro Preto atual e observar as mudanças do ponto de vista das intervenções urbanas”, conta Guimarães. Ao certo, Bohrer, que diz sempre ter sonhado com uma máquina do tempo, enxerga no projeto uma forma de favorecer as pessoas a “caminharem pela Ouro Preto na época do Arraial de Vila Rica do século 18. “Pensava como entrar nas gravuras”, revela o professor. Com cerca de 50 imagens raras e documentos inéditos captados durante o trabalho, a pesquisa foi ganhando novos rumos.

Entre conversas aqui outra acolá, o professor Bohrer conseguiu embalar seus sonhos quando conheceu, durante uma aula que lecionava, o arquiteto e urbanista Tiago Cunha, estudante de pós-graduação em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural, da IFMG, um expert em desenhos arquitetônicos em três dimensões. “Ele me disse que conseguiria construir, a partir das imagens descobertas, essa Ouro Preto do período da pesquisa em desenhos tridimensionais e depois em um vídeo 3D”, lembra-se Bohrer. “Era meu sonho da máquina do tempo ganhando vida”, empolga-se o professor.

“Deu-se o encontro da arte com as técnicas do desenho arquitetônico colocados à disposição da história”, afirma Cunha, que fez todo o trabalho de forma gratuita, já que o projeto não tinha recursos. Um ano de reuniões e trabalhos depois – sem verbas e apenas apoios institucionais -, esses jovens cientistas lançam agora o vídeo: “Uma incrível viagem 3D pela Ouro Preto do século XVIII”.

Ciberarqueologia

Nesse mergulho no passado proporcionado pela tecnologia, as pessoas vão poder mergulhar numa Vila Rica de 1760 por onde transitou, entre as calçadas e a edificação barroca, personagens históricos como o escultor e maior expoente da arte colonial no Brasil, Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho), o pai dele, Manoel Francisco Lisboa, o arquiteto e construtor que ergueu boa parte do Arraial de Vila Rica da época. Neste mesmo cenário, outros importantes nomes da história que moraram ou circularam por Vila Rica como o alferes Tiradentes (Joaquim José da Silva Xavier), o poeta arcadista e ativista político Cláudio Manoel da Costa, o inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, noivo da poetisa Marília de Dirceu, que também vivenciou a Vila Rica do século 18. “A pesquisa é multidisciplinar e vai muito além da arquitetura e do campo da história”, avalia Jussara Duarte, estudante do curso de Conservação e Restauro de Bens Imóveis. da IFMG, e bolsista do projeto.

No filme, a perfeição nos detalhes dos desenhos é de uma riqueza incrível. Quase que teletransportados à época, pelos textos raros encontrados nas pesquisas, o arquiteto Cunha conseguiu mostrar desde o dejetos dos cavalos até às bananas das vendas, assim como elementos da construção civil do período do estudo. Cunha afirma que a grande dificuldade do trabalho foi a modelagem tridimensional de construções – desenvolvimento de uma representação matemática de qualquer superfície, objetos ou personagens. “Os programas existentes não têm qualquer referência sobre o século 18”, afirma Cunha. “A gente conseguiu tirar uma Vila Rica do campo erudito para trazer para o popular”, comenta.

A pesquisa, ao cabo, está repleta de surpresas até mesmo para os ouropretanos como Jussara Duarte. “Descobrimos surpresas como a extensão da praça Tiradentes de hoje, que até a metade do século 18 era metade do tamanho atual”, conta Jussara. “Foram identificadas transformações socioespaciais ao longo dos períodos que os turistas e até moradores não tinham muitas informações”, explica Jussara. Para outro pesquisador e coautor do trabalho, Alan Rodrigues Guimarães, as descobertas em livros raros proporcionaram encontros com poemas, como o do poeta Cláudio Manoel, “Vila Rica”, em que o escritor arcadista fala sobre os detalhes construtivos e arquitetônicos da cidade da metade do século XVIII. “Foi o encontro da subjetividade das gravuras com o real, encontrado em textos”, avalia Guimarães. “O filme transforma em realidade 3D as paisagens urbanas de uma Ouro Preto do passado. Que extrapola os limites da academia”, diz. “É a ciberarqueologia” conclui o professor e idealizador do projeto, Alex Bohrer.

O desafio dos pesquisadores a partir de agora é, além de dar continuidade às pesquisas, conseguir captar recursos ou parcerias para aquisição de óculos 3D para que as pessoas possam usá-los, em plena Praça Tiradentes, no centro de Ouro Preto, e “caminhar pelo século XVIII”. “De uma certa forma, é o sonho da máquina do tempo funcionando”, diverte-se o professor Alex Bohrer.