Entre outras alegações, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, essencialmente justifica sua guerra de agressão contra a vizinha Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, com a suposta ameaça crescente que há décadas a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) representaria para a segurança russa.
Já numa de suas primeiras entrevistas como chefe de Estado, em março de 2000, à emissora britânica BBC, apesar de se mostrar aberto em relação à aliança militar, ele expressou ressalvas quanto à expansão dela em direção ao Leste Europeu, já englobando a Polônia, República Tcheca e Hungria. As assertivas dos Estados-membros, de que a Otan teria caráter puramente defensivo, não bastavam a Putin.
Para fundamentar suas ressalvas, o russo evocou por diversas vezes o que considerava uma quebra de confiança durante as negociações para o Tratado Dois Mais Quatro, de 1990. Nele a comunista República Democrática Alemã (RDA) e a República Federal da Alemanha (RFA) estabeleceram as condições para a reunificação do país, sob mediação dos Estados Unidos, União Soviética, Reino Unido e França.
Segundo Putin, na época os Estados ocidentais teriam prometido à URSS não ampliar a Otan pela Europa Oriental adentro, para além da antiga “Cortina de Ferro”. A Otan refuta essa versão.
O que a Otan prometeu à URSS?
Desde então, políticos, acadêmicos e leigos debatem acaloradamente o que, exatamente, a Aliança Atlântica teria prometido aos soviéticos. Indiscutível é que, do texto do Tratado Dois Mais Quatro, consta apenas que não seriam estacionadas tropas estrangeiras no território da hoje extinta RDA.
Com base nesse fato, o Ministério alemão do Exterior, por exemplo, afirma que “não houve declarações juridicamente vinculativas sobre a ampliação da Otan ou sobre a inclusão de novos membros”.
Por outro lado, estão também devidamente comprovadas as numerosas afirmações de diplomatas ocidentais que apoiam a tese de Putin. Entre outros, o então chefe da diplomacia alemã, Hans-Dietrich Genscher, citou o compromisso de “não expansão da Otan […] de um modo geral”; e seu colega americano James Baker empregou a fórmula “nem uma polegada para o Leste”.
No entanto, certos historiadores argumentam que ambos teriam rapidamente retirado essas promessas. Outros enfatizam que elas só poderiam ter se referido à ex-RDA, até pelo fato de contrariarem o princípio da “liberdade de escolher alianças”, propagado pelo Ocidente.
Entre esses especialistas, Jim Townsend, na época funcionário do departamento de política para a Europa e a Otan da Secretaria de Defesa dos EUA, assegura: “O assunto era exclusivamente a Alemanha e a reunificação alemã.”
Gorbachev “fora de contexto”?
O então presidente da URSS, Mikhail Gorbachev, também é citado como testemunha principal dessa versão, por ter afirmado, numa entrevista em 2014: “O tema da expansão da Otan para o Leste não foi discutido, em absoluto.” Com isso, ele teria retrocedido em relação a declarações anteriores.
Esses argumentos, contudo, não convencem o professor de política internacional Joshua Shifrinson, da Universidade de Maryland, para quem esse suposto retrocesso do líder russo teria sido tirado do contexto.
Isso porque, na mesma entrevista, referindo-se à discussão iniciada em 1993 sobre a adesão à Otan de países do antigo Pacto de Varsóvia, Gorbachev comentara: “Desde o começo eu classifiquei isso como um grande erro. Foi definitivamente uma ruptura para com o espírito das declarações e garantias que nos deram em 1990.”
Nesse contexto, conta também a declaração pública do secretário-geral da Otan de 1988 a 1994, Manfred Wörner, em maio de 1990: “O simples fato de que estamos dispostos a não estacionar forças da Otan atrás das fronteiras da RFA dá à União Soviética garantias de segurança sólidas.” Putin citou essa afirmação na Conferência de Segurança de Munique de 2007, cobrando: “Onde estão essas garantias?”
Entre as diversas fontes analisadas por Shifrinson, está a ata de uma reunião dos embaixadores dos EUA, Reino Unido, França e Alemanha, as quatro principais potências da Otan, em março de 1991. Nela, o representante alemão, Jürgen Chrobog, declara: “Deixamos explícito que não vamos expandir a Otan para além do rio Elba. Por isso, não podemos oferecer filiação à Polônia e aos outros.”
Segundo a ata, na época classificada como confidencial, ninguém fez ressalvas. O diplomata americano Raymond Seitz chegou a confirmar: “Perante a União Soviética, deixamos claro – tanto no Tratado Dois Mais Quatro como em outras conversas – que não vamos nos aproveitar da retirada das tropas soviéticas do Leste Europeu.”
A partir daí o professor de Maryland conclui que, meio ano após a assinatura do pacto, esse era o consenso entre os principais diplomatas da Otan, uma vez que “sem dúvida, se fazia considerações sobre o futuro da Europa Oriental, em geral”.
Benjamin Friedman, do think tank americano Defense Priorities, resume: “É fato que os EUA não fizeram uma promessa solene de que nunca íamos ampliar a Otan. Mas certamente deram essa impressão aos russos, e eu acho que isso os aborreceu.”
Otan constrangeu a Rússia à guerra contra a Ucrânia?
Em relação à agressão militar de 24 de fevereiro de 2022, Shifrinson não coloca dúvidas: “A verdade inegável é que a Rússia invadiu a Ucrânia.” Por outro lado, “pode-se reconhecer que garantias foram dadas e depois retiradas, sem que isso justifique a conduta russa”.
Friedman concorda: “Há uma diferença entre uma afirmativa sobre causalidade e uma sobre responsabilidade moral.” Portanto, apesar de a invasão do país vizinho ser moralmente condenável, “a expansão, ou a perspectiva de uma expansão [da Otan] para incluir a Ucrânia foi um motivo importante para a guerra”.
Também para Townsend, que após a carreira no Pentágono e na Otan entrou para o think tank Atlantic Council, Moscou é o agressor inegável: “Sempre fomos muito cautelosos e debatemos sempre com os russos, e eles nos deram sinal verde”, até que Putin “mencionou de repente” um problema na Conferência de Segurança de Munique.
Para o ex-funcionário da Defesa americana, o erro da Aliança Atlântica teria sido outro:”Se a Otan fez algo para desestabilizar a arquitetura de segurança, é o fato dela não ser suficientemente forte.”