O músico Dado Villa-Lobos faz aniversário no dia 29 de junho. Nesse ano de pandemia, sem festa nem confraternização com os amigos, ele recebeu um presente que vinha aguardando há tempos. Nada de guitarras novas ou discos de ouro: Dado e o companheiro de palco, Marcelo Bonfá, receberam a decisão judicial que os permitirá voltar a usar o nome da banda que ajudaram a fundar, a Legião Urbana.

O julgamento no Superior Tribunal de Justiça, decidido pelo voto de minerva do ministro Marco Buzzi, surgiu de uma ação movida na corte por Giuliano Manfredini, filho e herdeiro do cantor Renato Russo, morto em 1996. “A perpetuação do uso do nome Legião Urbana contribui para que se mantenham vivas e presentes nas memórias dos fãs as composições musicais do grupo, permitindo ainda que as novas gerações tenham um contato mais direto com a banda e com o rock nacional”, afirmou Buzzi, em seu voto.

“Tiramos um peso das costas. Nunca quisemos vender sabonetes com o nome da Legião Urbana”, afirma Dado. “A banda acabou quando o Renato morreu, mas ninguém poderá apagar o que fizemos juntos. O nome da banda é praticamente meu sobrenome, ‘Dado da Legião’. Legião Urbana não é apenas uma marca, é um legado cultural.” Giuliano Manfredini tem os direitos sobre a marca “Legião Urbana” porque o nome podia ser registrado sob uma única pessoa jurídica e, à época, decidiram que ficaria sob a empresa de Renato. Com a decisão, Dado e Bonfá podem voltar a se apresentar como músicos da Legião Urbana – o que havia sido impedido pelo herdeiro de Renato Russo.

É raro escrever uma frase como esta no Brasil, mas vamos lá: a justiça foi feita. Uma banda ou qualquer outra expressão artística coletiva não pode e nem deve seguir o mesmo parâmetro legal usado para determinar o uso de uma marca comercial corporativa. O caso aqui é mais complexo: Dado e Bonfá têm, sim, direito de associar seus nomes à banda para a qual dedicaram suas vidas.

A impressão que fica é que Manfredini luta apenas como um herdeiro interessado no dinheiro que a banda ainda pode render, sem nenhuma preocupação com a obra do Legião Urbana em si. Ele tem o direito comercial sobre a marca? Sim, porque herdou a empresa do pai e os bens associados a essa pessoa jurídica. Isso não significa que ele tenha direito sobre o que o Legião Urbana representa do ponto de vista cultural, subjetivo ou artístico.

Os dois músicos remanescentes não podem apagar carreiras nas quais investiram décadas de trabalho apenas porque alguém quer lucrar sozinho. O sucesso da Legião não vem apenas por causa de Renato, mas graças a Dado e Bonfá. Seria um paradoxo: os músicos, por meio de suas gravações, seguem contribuindo para manter a banda viva, mas estavam impedidos de informar isso ao público que ainda quer vê-los no palco.

Pelo bom senso, o correto seria que a decisão sobre os limites de cada parte envolvida tivesse sido tomada de comum acordo. A decisão de judicializar a questão é uma vergonha: Renato Russo, Dado e Bonfá eram punks de Brasília, jovens contra o sistema e com o país que, infelizmente, ainda é o mesmo cantado na letra contundente de “Que País é Esse”.

Deixar que advogados e juízes determinem o futuro de um grupo quando dois terços dele ainda estão vivos é um desrespeito à memória de Renato Russo. Uma coisa é receber uma compensação financeira pelos direitos do uso dessa marca, algo justo. Manfredini é, sim, o herdeiro. Seria até justo que a porcentagem dessa divisão fosse maior, uma vez que Renato era o principal compositor da banda. Isso, no entanto, já é regrado pelas leis de direitos autorais e conexos.

Exigir a visão simplista aplicada no universo das “marcas e patentes” é fora de propósito porque música não é algo feito em linha de montagem, como um produto em que esse tipo de discussão faz sentido.

Mesmo durante esse processo, Dado e Bonfá seguiram com suas vidas. Acredito, no entanto, que essa vitória era uma questão de honra. Ao lado do vocalista Andre Frateschi, planejavam homenagear a em turnês comemorativas quando foram impedidos pela ação de Manfredini.

Dado é um artista consagrado: faz trilhas sonoras – compôs recentemente a música para a série “Bom Dia, Verônica, disponível na Netflix –, tem um selo independente, RockIt, e acaba de lançar a faixa “Return the Gift” em um tributo à banda Gang of Four ao lado de grandes nomes internacionais como Flea (Red Hot Chili Peppers), Tom Morello (Rage Against the Machine) e Serj Tankian (System of a Down).

Marcelo Bonfá lançou bem-sucedidos álbuns solo, como “O Barco Além do Sol” e “Mobile”, e se dedica à produção da cachaça orgânica “Perfeição” em sua fazenda em Minas Gerais.

Embora seja óbvio dizer isso, a justiça acerta em concedê-los o direito de ser quem são, sem precisar pedir autorização a ninguém. Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá serão eternos legionários. Já Manfredini podia tentar escrever músicas em vez de brigar pela herança do pai. Será?