AVENTURA “O sedutor do sertão”, edição da Nova Fronteira, com xilogravuras de Manuel Dantas Suassuna

As décadas de 1950 e 1960 marcaram o período mais produtivo de Ariano Suassuna (1927-2014). Foi nessa época que o escritor paraibano imaginou os personagens sertanejos que povoaram peças de teatro, romances e poemas, e que ganhariam fama crescente. Hoje fazem parte da cultura popular brasileira, por causa das adaptações de sucesso para cinema, teatro e televisão, sempre com supervisão do criador.

De 1958 a 1970, escreveu sua obra maior, o romance armorial “O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta” ou simplesmente “A Pedra do Reino”, de 1971. Seu projeto era fazer a sua obra orbitar em torno de uma trilogia que incluía o livro, num entrelaçamento de personagens e aventuras ambientado no sertão nordestino dos anos 1930. Pela primeira vez, um autor lusófono combinava as sagas de cordel nordestino e as narrativas de cavalaria europeias, filtrando todas elas através do ponto de vista do romance “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, a paródia suprema da cavalaria medieval.

Suassuna criou um protagonista e narrador fantasioso, Dom Pedro Dinis Quaderna, fiscal de impostos e bibliotecário de Taperoá, contador de histórias irremediavelmente embriagado pelo vinho do Rio Grande e pelas epopeias sertanejas e ibéricas. O projeto original era batizar a trilogia de “Quaderna, o decifrador”, que compreenderia os livros “A Pedra do Reino”, “O rei degolado” e “Sinésio, Alumioso”. Mas não conseguiu concluí-lo. Nesse ínterim, Suassuna empilhou uma tamanha quantidade de textos datilografados que o mercado consumidor de cultura não deu conta de absorver. Assim, ficaram pelo caminho diversas aventuras. Depois da morte do escritor, sua família tem divulgado centenas de datiloscritos inéditos. Para coordenar e fixar os textos, os herdeiros acertaram a publicação com a editora Nova Fronteira e convidaram um amigo de Ariano, o crítico Carlos Newton Júnior, professor de Estética da Universidade Federal de Pernambuco.

TEATRO A peça “Auto de João da Cruz”, de 1950, foi redescoberta em 2018 e ganhou uma montagem da Cia. OmondÉ em janeiro de 2020 no Rio de Janeiro (Crédito:Rodrigo Menezes)

“As peças, poemas e romances engavetados permitem revelar a dimensão totalizante de Ariano”, diz Newton Júnior à ISTOÉ. “Ele construiu um universo em expansão de personagens e histórias que se prolifera através dos anos, para revelar que tudo o que compôs se interliga.”

Em 2017, o professor lançou o inédito “Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores”. Esta obra foi concebida como uma sequência de “A Pedra do Reino”, que assim foi dotada de uma nova arquitetura. Em 2018 foi editado o “Teatro Completo”, com oito peças inéditas. Uma delas, “Auto de João da Cruz”, de 1950, ganhou encenação no ano seguinte, e ainda percorre o Brasil. Agora é chegada a vez da ficção e dos poemas. O romance “O sedutor do sertão ou o grande golpe da mulher e da malvada” acaba de ser lançado. O texto, escrito em março de 1966 em apenas 27 dias, faz parte do ciclo de “A Pedra do Reino” e pode ser lido como um adendo ao romance principal – ou um spin off, como se diz hoje. Outra narrativa que integraria e “A Pedra do Reino” é o romance “As infâncias de Quaderna”, inédito em livro, e publicado em folhetins no “Diário de Pernambuco” entre 2 de maio de 1976 e 19 de junho de 1977, a sair em volume em 2021. Ambos os romances comporiam a segunda parte de “O rei degolado”, que ficou incompleto.

Até o fim deste ano, deve sair a produção menos conhecida de Suassuna: a “Poesia Completa”, com abundante material inédito, como o poema cantável “Canto popular da paixão” (leia à pág. 61), aqui publicado. “A poesia de Ariano foi ofuscada por causa do êxito que teve em outros gêneros”, afirma Newton Júnior. “Mas começou como poeta. Sua estreia literária ocorreu em 1945, com um poema estampado no ‘Jornal do Commercio’ de Recife”.

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MINISSÉRIE A adaptação televisiva do romance “A pedra do reino” foi ao ar pela TV Globo em 2007. Ela contou com direção de Luiz Fernando Carvalho e o ator Irandhir Santos no papel de Quaderna (à esq.) (Crédito:Divulgação)

A reorganização da obra, a partir da inclusão de textos desconhecidos, abre espaço para interpretações inauditas. “O que se evidencia é que as histórias de Ariano são modulares e giram em torno do mesmo núcleo, a mesma paisagem e galeria de personagens”, diz Newton Júnior. “Trata-se de um mundo imaginário arraigado na infância vivida no sertão da Paraíba, transpassado de tramas políticas e peripécias de cavalaria.” É como se o menino Ariano exorcizasse, por meio das epopeias em cordel que lia e transfigurava, o assassinato do pai, o governador João Suassuna, e as revoltas que se deram no início da Revolução de 1930.

“O sedutor do sertão” é inspirado em um trecho de “Os sertões”, de Euclides da Cunha. Nele, Antônio Conselheiro manda esvaziar os barris de cachaça de mercadores em busca de consumidores do arraial de Canudos. Já o entrecho de Suassuna é ambientado na “Guerra de Princesa”, em 1930, revolta antigetulista urdida por clãs sertanejos, entre eles o de Suassuna. Parte do enredo se baseia na peça “O desertor de Princesa” (1958). O herói é o valente Malaquias Pavão, um dos doze irmãos bastardos de Quaderna, vendedor de cachaça e admirador de Silviana, mulher do vilão Sinfrônio Perigo. Ao modo do Conselheiro, o arcebispo autocoroado rei de Princesa manda esvaziar as ânforas de cachaça do protagonista. Mas nem tudo está perdido. Malaquias dá vazão a seu lirismo ao trocar com Sinfrônio o seu cavalo Rei de Ouro pela posse de Silviana. Suassuna pretendia converter a história em filme, mas desistiu. “O resultado é uma narrativa tão picaresca como heroica, mais direta e acessível, que ele talvez colocasse na boca do narrador Quaderna”, afirma Newton Júnior. “O livro pode atrair os leitores jovens, mesmo que soe hoje politicamente incorreto.” Na caatinga dos anos 1930, era comum negociar cavalo por mulher. O escritor é o repórter de seu tempo.

Livros
Uma vida em público

Poema inédito
CANTO POPULAR DA PAIXÃO

(Poema Cantável)

CORO
Com o Manto Escarlate do Sangue do Rei lá vai o Coroado
para a Cruz que lhe forjei.

ESTROFES
Cravo Roxo dolorido
nunca fez mal a ninguém
mas a Pantera da Morte
há de sangrá-lo também.

Cortou-lhe a Carne sem mancha
a correia da Chibata.
Suou sangue em Gota Forte,
brilha o sangue em luz de Prata.

Nossa Maldade tirana
quis assim vê-la sangrada:
de uma Coroa de Espinhos
vai-lhe a Fronte cravejada.

Sete Quedas matadeiras
levou Ele em seu Caminho:
sua Cara limpa e forte
sela o sangue em Alvo linho.

Já o Madeiro o recebe.
Joga a Sorte o povo cego.
Traspassam seus Pés de Cravos,
e as Mãos sagradas de Pregos.

Em vez de Vinho, o Vinagre
sua Sede castigou.
Ferro afiado da Lança
seu Coração traspassou.


Chega o Gavião da Morte:
o sangue já se lhe esvai:
mais que do Ferro dos cravos
morre da falta do Pai.

E foi assim que O matamos,
mas Ele ressuscitou.
Subiu num Carro de Fogo
e o Sol o transfigurou.

[25.XI.64]

 


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