Jair Bolsonaro tinha 18 anos de idade quando entrou para o Exército. Jair Bolsonaro tinha 12 anos de Exército quando o Brasil reencontrou a democracia após mobilização que reuniu setores da sociedade civil depois de duas décadas de torturante ditadura dos homens de ombros estrelados. Bolsonaro, portanto, assistiu a tudo. Viu tudo. Mas não aprendeu nada. Não aprendeu, por exemplo, que as brasileiras e os brasileiros deixam de lado as suas preferências partidárias, juntam-se em corações e mentes e dão-se as mãos para impedir que aventureiros acabem roubando aquilo que lhes é um direito inalienável, uma vez que legítimo e constitucional – o direito aos valores democráticos. “A Constituição de 1988 fundou um Estado Democrático de Direito”, diz Heleno Torres, professor titular de Direito Financeiro da USP. “Com isso, no Brasil, a democracia foi alçada à condição máxima de fundamento central da relação entre sociedade e governos que se sucedem na gestão do Estado”.

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A organização cívica do passado que poderia ter servido de lição ao presidente teve o seu auge na campanha das “Diretas Já” (defesa do voto popular nos estertores da ditadura militar). A organização cívica do presente está bem debaixo do seu nariz, mas a visão obnubilada dos populistas distorce-lhes a realidade – e a realidade localiza-se logo ali, avizinha-se, tem até data marcada: quinta-feira, 11 de agosto. Esse dia entrará para o calendário da história política do Brasil como sendo um marco de protesto geral contra o capitão ocupante do Planalto, que, em três anos e meio de mandato, bateu ponto todos os dias nos ataques às instituições da República e nas ameaças de golpe caso não seja reeleito.

1977 O catedrático em Direito Goffredo da Silva Telles lê na faculdade do Largo de São Francisco a Carta aos Brasileiros: marco definitivo na luta contra a ditadura militar (Crédito:Kenji Honda)

O ato mais significativo acontecerá em São Paulo, na tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, tida desde o século XIX, pelos corpos docentes e discentes que nela ensinaram e estudaram através dos tempos, como “território livre” de proteção às garantias constitucionais. Nessa faculdade serão lidos dois manifestos. Um deles é a Carta às brasileiras e aos brasileiros pela defesa do Estado Democrático de Direito, documento organizado pela própria USP e que reúne milhares de assinaturas de advogados, juízes, desembargadores, ex-ministros do STF, empresários, estudantes, acadêmicos, artistas, intelectuais, escritores e muita gente das demais profissões. Na quinta-feira 4 contava com cerca de 800 mil chancelas e ganhara, dois dias antes, os endossos de João Doria, ex-governador de São Paulo, e do apresentador Luciano Huck. “Um País que não respeita a democracia não respeita a liberdade, o seu povo e o seu futuro”, afirma Doria. “Todos em defesa da democracia!”, diz Huck.

2022 Bolsonaro tenta diluir as instituições dizendo ter o apoio dos militares: pela segunda vez a sociedade civil reage com uma carta em defesa da democracia (Crédito:Eduardo Anizelli)

O segundo manifesto a ser lido na faculdade, intitulado Em Defesa da Democracia e da Justiça, é de autoria da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), com amplo apoio da Federação Brasileira de Bancos (Febraban). A interlocutores, o presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva, tem explicado que não se trata de um gesto contrário a Bolsonaro, mas, isso sim, de fortalecer as instituições. A Federação Nacional de Saúde Suplementar, representativa de 40% do mercado, e a Fecomércio-SP, que se traduz em 10% do PIB e gera 10 milhões de empregos, aderiram ao chamamento da Fiesp — são apenas dois exemplos entre os muitos pesos pesados da economia nacional que fizeram o mesmo. Dá para se descobrir, então, porque Bolsonaro anda tresloucado, ansioso, agressivo e tão sensível — sensibilidade que nele não se viu e não se vê em relação aos quase 700 mil mortos pela Covid. É que agora quem demonstra descontentamento com sua gestão é a elite financeira e a elite industrial, e isso lhe põe medo, muito medo. Zonzo, marcou e desmarcou sua presença na Fiesp no próprio dia 11, zonzo, marcou e desmarcou jantar com empresários.

“A Constituição de 1988 fundou um Estado Democrático de Direito. Com isso, alçou a democracia à condição máxima de fundamento central da relação entre sociedade e governos que se sucedem na gestão do Estado” Heleno Torres, professor titular de Direito Financeiro da USP (Crédito:Divulgação)

Tem mais: no terreno da mídia, que Bolsonaro tanto despreza e ofende com palavras de baixo calão e piadas misóginas e sexistas, vale destaque o texto divulgado pela Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner), Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e Associação Nacional de Jornais (ANJ). Defende, enfaticamente, a liberdade de imprensa e o respeito aos resultados das eleições. O fantástico número de assinaturas no texto acadêmico surpreendeu positivamente o diretor da Faculdade de Direito, Celso Campilongo: “esperava no máximo três mil nomes”. E a movimentação, em geral, também despertou a atenção do CEO da empresa Suzano, Walter Schalka: “mobilização como essa de empresários eu nunca tinha visto”.

“Todos em defesa da democracia!” Luciano Huck, apresentador (Crédito:GABRIELA BILO)

No pendular do tempo, o movimento atual traz ecos do passado. A história nunca de repete, ensinou o filósofo pré-socrático e dialético Heráclito com a frase “jamais nos banhamos nas mesmas águas de um rio”. Falando-se em dialética, a arrogância de Bolsonaro fez-lhe imaginar que tinha poderes de paralisar a história — é o que gostaria de fazer nesse momento, mas não pode. Só lhe resta ver o tempo seguir em frente, enquanto o passado vai-lhe exibindo os mortos pela Covid e seus crimes de responsabilidade e contra a humanidade. A história também não se autocopia, mas faz com que acontecimentos guardem similitude entre si. Em 1977 era presidente o general Ernesto Geisel. Ele decretou uma série de duras medidas que ficaram conhecidas como “Pacote de Abril”. Diante do crescimento da oposição, então reunida no MDB, Geisel criou, entre outros itens, a esdrúxula figura do “senador biônico” (indicado pelo Poder Executivo) e propôs mandato de seis anos ao presidente da República. O Congresso rechaçou o projeto e foi fechado – esse era o modus operandi da ditadura militar.

“A democracia é o princípio dos princípios jurídicos. Dele não se pode abrir mão, sob pena de a Constituição ruir por inteiro” Carlos Ayres Britto, ex-ministro do STF (Crédito:Divulgação)

Geisel temia que o MDB se fortalecesse ainda mais em eleições legislativas, ou seja, temia as urnas. Também são elas, as urnas, que causam pânico em Bolsonaro: ele vem dizendo em eventos evangélicos e a assessores militares que, se não se reeleger, é alta a probabilidade de ser preso, embora não admita a coleção que montou de crimes. Conversa sobre isso ora irascível, ora em estado de anodinia. Em português claro, é inimaginável que alguém queira ser presidente do Brasil somente pela necessidade de se escudar na proteção do foro especial por prerrogativa de função. É mesmo inimaginável? Em se tratando do capitão, não.

“Democracia é valor inegociável. Os atos do dia 11 nos enchem de esperança” José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça (Crédito:TONI PIRES )

Ditadores, é claro, não gostam de urnas e por isso tentam alienar o inalheável, que é a democracia. “A democracia não é negociável e estará protegida se for seguida a legislação”, diz o general da reserva e ex-ministro Carlos Alberto dos Santos Cruz. A referência à legislação feita por ele é perfeita. Leis civilizatórias são atropeladas hoje e eram atropeladas no passado pelo poder federal. Dessa forma, surgiu, então, a primeira Carta aos brasileiros, lida na mesma Faculdade do Largo de São Francisco pelo professor Goffredo da Silva Telles, há 45 anos. “Democracia é valor inegociável, precisamos novamente da união de todas as forças em defesa do povo brasileiro diante de um governo inoperante, incompetente e corrupto. Os atos programados para o dia onze nos enchem de esperança”, diz o ex-ministro da Justiça e jurista José Carlos Dias, um dos principais organizadores da carta do passado e signatário da atual. “O ano de 1977 representou uma mudança de rumos na luta pela redemocratização. Tenho a certeza de que agora, em 2022, haverá uma inflexão na defesa intransigente da continuidade da democracia”, declarou Campilongo. Um ponto em comum entre os dois momentos mostra a infantilidade daqueles que governam pelo arbítrio. Geisel chamou o manifesto de 1977 de “bilhete”. Bolsonaro classificou o documento do próximo dia 11 como ”cartinha”.

“Eu nunca tinha visto mobilização tão grande de empresários como essa” Walter Schalka, presidente da Suzano (Crédito: Zanone Fraissat)

Existirão mais manifestações contrárias a Bolsonaro e, no último final de semana, em São Paulo, ele próprio foi ventania nessa direção. De estultice em estultice, de ofensa em ofensa ao TSE e STF, conseguiu fazer com que tais mobilizações crescessem e que seus organizadores antecipassem para 11 de agosto os atos que estavam agendados para o Sete de Setembro. Praticamente todas as federações e centrais sindicais, e também os diretórios e centros acadêmicos, terão essa atitude, aproveitando ainda a oportunidade de ser o Dia do Estudante. Assim, a campanha Fora Bolsonaro, integrada por movimentos sociais como “Povo sem Medo”, “Brasil Popular”, “Coalizão Negra por Direitos”, “União Nacional dos Estudantes” e “Central de Movimentos Populares”, terá um tema unificado para os protestos em todo o País: “Dia Nacional de Mobilização contra os Ataques Antidemocráticos”. João Carlos Gonçalves, secretário-geral da Força Sindical, afirma: “Nós nos incorporamos ao movimento iniciado na Faculdade de Direito. E estamos divulgando o manifesto porque é importante que os trabalhadores o assinem”.

Jair Bolsonaro, em entrevista a rádio gaúcha Guaíba, voltou a extravasar o seu estado psíquico de pânico e pavor, apelando novamente a ofensas. Segundo ele, quem colocou o nome na carta dos acadêmicos é “sem caráter” e “cara de pau”. A resposta à fala do mandatário chegou discreta e precisa com o procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Luiz Antonio Marrey, um dos principais idealizadores do ato: “quem diz isso só pode ter hostilidade ao regime democrático”. O populista Bolsonaro mostra-se amando sol e mar, mas cultiva em seu íntimo escuridão e naufrágio. Foi nesse parafuso enlouquecedor de sentimentos antagônicos, que ele anunciou: o desfile de Sete de Setembro no Rio de Janeiro será realizado agora na orla de Copacabana. O capitão assim o quer, em plena alucinação, para tentar inocular nas tropas a simbologia do levante e da morte dos “18 do Forte de Copacabana”, nascedouro em 1922 do Tenentismo, movimento que influenciou a vida política brasileira e foi um dos responsáveis pelo encerramento do período da Primeira República (leia Box).

“A democracia não é negociável e estará protegida se for seguida a legislação” Carlos Alberto dos Santos Cruz, general da reserva e ex-ministro

Mais uma vez Bolsonaro lê no alfabeto da história somente as letras que lhe interessam. Ele pretende matar as eleições e, assim, a democracia, mas o Tenentismo, pelo menos até os anos 1930, propugnou justamente pelo contrário: queria eleições sem o chamado “voto de cabresto” e com alternância de governantes para além dos quadros das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais. O movimento sonhava, talvez até ingenuamente, com um Brasil moderno e democrata. Bolsonaro quer o obscurantismo e vale-se da velha tática de inventar inimigos internos. Na verdade, desde o despertar do século XX golpistas seguem no Brasil essa litania, e prova disso é que os fanáticos adeptos de Floriano Peixoto criaram a fake news de que havia perigosos militantes tramando o retorno da monarquia. Bolsonaro mente sobre as urnas eletrônicas e as elegeu adversárias internas da Nação. A sociedade movimenta-se. E não vai deixar ter golpe algum. “A democracia é o princípio dos princípios jurídicos”, diz o ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto. “É o princípio do qual não se pode abrir mão de modo algum, sob pena de a própria Constituição ruir por inteiro”.

1922 Eduardo Gomes, Siqueira Campos, Newton Prado e o civil Octavio Corrêa (da esq. à dir.): a mítica caminhada para a morte na Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro (Crédito:Divulgação)

A revolta dos 18 do forte de Copacabana

Ao contrário da lisura, confiabilidade e integridade com que se dão atualmente as eleições no Brasil, por meio das urnas eletrônicas, eram bastante desonestas e viciadas as votações no início do século passado. Contra a situação se insurgiram tenentes de alguns estados, sobretudo do Rio de Janeiro. Vamos ao ano de 1922.

Presidia o País Epitácio Pessoa, e seu candidato na sucessão chamava-se Artur Bernardes, apoiado pelas oligarquias paulista e mineira. O principal adversário, Nilo Peçanha, trazia apoios de estados menos expressivos e, obviamente, perdeu. Somente por tal razão? Não. Perdeu porque a votação foi de cartas marcadas. Alguns quartéis se rebelaram, mas as tropas legalistas logo sufocaram o movimento.

Ficou um foco de resistência: o Forte de Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro. Mesmo quando os oficiais maiores abandonaram-no, os tenentes, todos profundos admiradores de Hermes da Fonseca, lá seguiram lutando sob o comando de Antônio de Siqueira Campos. Na tarde de 5 de julho, ele e um pequeno grupo integrado, entre outros, por Newton Prado e Eduardo Gomes, saíram com armas nas mãos pela Avenida Atlântica, na chamada “Marcha da Morte” — mesmo sabendo que inevitavelmente morreriam, enfrentaram as tropas do governo. Somente dois tenentes sobreviveram feridos: Siqueira Campos e Eduardo Gomes.

O fato entrou para a história com o mítico nome de “Revolta dos 18 do Forte de Copacabana”. O massacre de tenentes, soldados e de um civil, chamado Octavio Corrêa, deu início ao movimento Tenentista que passou a lutar por um Brasil moderno e industrializado, não dependente exclusivamente da política agrária. Após 1930 o Tenentismo se cindiu, uma ala ingressou no Partido Comunista Brasileiro, outra se tornou essencialmente golpista. Para se ter uma ideia, esse segundo grupo gerou, entre outros, Humberto de Alencar Castelo Branco, Arthur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel – todos generais do golpe militar de 1964.

PÍFIAS LETRAS Em ralas 27 palavras, Bolsonaro achou que estaria respondendo aos manifestos que trazem até referências teóricas: falta-lhe cultura e apreço por bons textos