A indicação da atriz Regina Duarte para a Secretaria Especial da Cultura é a melhor notícia para o setor cultural — e talvez para todo o governo — desde que Jair Bolsonaro assumiu o seu mandato. Consagrada nos palcos e nas telas, ela não é neófita na política. Sempre externou posições conservadoras, exercendo um direito legítimo, como quando disse que tinha “medo” da chegada do PT ao poder, no início dos anos 2000. Pagou um alto preço por isso num meio que tradicionalmente é propenso a apoiar teses da esquerda. Ainda assim, manteve a coerência e conta com grande respeito na área.

SAIA JUSTA Na semana passada, Regina Duarte postou uma foto com uma montagem de 10 artistas, sugerindo que eles apoiariam sua entrada na secretaria. Vários desmentiram. Dizem que respeitaram a sua decisão e a admiram pessoalmente, mas não apoiam o governo. A atriz removeu o post

No novo cargo, a atriz pode fazer a diferença integrando o time técnico e funcional do governo, e não a ala ideológica disfuncional. Alguns parâmetros já se descortinam. A atriz não deve compactuar com os excessos da claque bolsonarista, que flerta com o autoritarismo. Ela deve rechaçar teses estapafúrdias como a defendida pelo antecessor na Secretaria da Cultura, Roberto Alvim, que mimetizou o chefe da propaganda nazista para defender um dirigismo cultural tão nefasto quanto anacrônico. Da mesma forma, em sua equipe ela não deve abrigar nomes como o jornalista Sergio Camargo, que havia sido indicado para a Fundação Palmares, autor de declarações racistas que relativizaram o papel nefasto da escravidão. Nem deve manter na chefia da Funarte o músico Dante Mantovani, que associou o rock ao satanismo —esse será um dos primeiros a cair. Para esse cargo, atriz já estaria considerando nomear Humberto Braga, que passou pela Fundação em 2016, no governo Temer.

Dentro da atual estrutura da Secretaria, no entanto, terá que driblar dificuldades gestadas pela equipe. Janícia Silva, por exemplo, conhecida como Jane, é reverenda e deve ocupar o cargo de secretária-adjunta da Cultura, cargo importante, logo abaixo de Regina. Além dela, muitos outros foram colocados em cargos estratégicos pelo extremismo e pouca tolerância à diversidade. São a face da atual gestão, que perdeu quadros técnicos e ganhou nomes que pregam valores religiosos. Apesar de ser bolsonarista de primeira hora — o que lhe garante um acesso privilegiado ao presidente —, Regina terá um grande desafio para cumprir seu projeto em um governo que até agora demonstrou pouca importância à cultura. Em menos de um ano, a pasta que era Ministério foi rebaixada a Secretaria, embutida dentro do Ministério da Cidadania e depois transferida para a pasta do Turismo. Diminuíram os recursos financeiros: perdeu cerca de 10% a 15% de funcionários, o que atrasou atividades e projetos programados. Além disso, cerca de 80 servidores foram transferidos a outras áreas em 2019. Como se não bastasse, a gestão da Ancine também se tornou um imbróglio: sem a diretoria, o Plano Anual de Investimentos está parado e com ele os R$ 700 milhões a serem destinados ao audiovisual.

Fogo amigo

Outro obstáculo certamente será lidar com as críticas da classe artística. Mas elas também vieram acompanhadas de elogios e antecipam o papel de conciliadora que Regina poderá adquirir à frente da Secretaria. Com 54 anos de carreira, por sua postura equilibrada e bom senso, ela conquistou o respeito de colegas. Isso significa que poderá fazer uma ponte entre o governo de direita e os interesses da classe, e assim diminuir o clima de polarização.

Numa antecipação da atitude que pode ser esperada à frente da Secretaria, a atriz já se posicionou contra a censura pregada por Bolsonaro e pelo antecessor na Secretaria. Essa posição já ficou clara pelas opiniões que externou recentemente. Por exemplo, quando defendeu o filme “Bruna Surfistinha”, a despeito da nudez criticada pelo ministro do Turismo, Marcelo Álvaro. Além disso, em uma das reuniões que fez com o atual governo, fez questão de se posicionar: “não se esqueçam que eu sou uma artista”. Apesar da defesa da restrição ideológica na produção artística do entorno bolsonarista, é pouco provável que Regina, pelo seu histórico e carreira, compactue com teses como o cerceamento de produções de temática LGBT. Também não deve asfixiar financeiramente o setor, apesar de já ter defendido uma participação menor do Estado na cultura, a quem caberia buscar maior apoio privado.

Se cumprir sua missão, Regina representará um ponto de inflexão no governo, que se escorava na agenda de costumes e na batalha ideológica, carecendo de apoio amplo e pragmatismo. Ela pode chacoalhar o ninho bolsonarista. Como atriz, já mostrou o seu talento, com personagens marcantes. Como líder política e gestora de uma pasta importante, a “Viúva Porcina” poderá provar que também tem talento fora das telas. Ainda não oficializou o novo cargo porque acerta aspectos privados, mas já demonstrou desprendimento para abdicar de contratos publicitários e de um salário que vai de R$ 120 mil (quando atua em novelas) a R$ 60 mil mensais (quando está fora das telas) na maior TV do País. No serviço público, receberá apenas R$ 15 mil por mês. Regina é a quarta pessoa a ocupar o cargo. Para quem já foi a rainha da sucata, será fichinha assumir essa pasta em meio ao caos.

AS IDEIAS DA NOVA SECRETÁRIA
O que esperar da atriz na Secretaria Especial da Cultura

> CLAQUE BOLSONARISTA
A atriz não deve compactuar com os excessos bolsonaristas. Deve rechaçar teses estapafúrdias como a do antecessor, Roberto Alvim, que copiou o chefe da propaganda nazista para defender o dirigismo cultural

RURALISTA Regina é casada com o pecuarista Eduardo Lippincott desde 2002 e frequenta feiras agropecuárias (Crédito:Divulgação)

> EQUIPE
Não deve abrigar nomes como Sergio Camargo, indicado para a Fundação Palmares, autor de declarações que relativizaram o papel da escravidão. Nem deve manter na chefia da Funarte Dante Mantovani, que associou o rock ao satanismo

> PAUTA RELIGIOSA
Terá que driblar dificuldades gestadas pela atual equipe. Janícia Silva, conhecida como Jane, é reverenda e deve ocupar o cargo de secretária-adjunta. Além dela, muitos foram colocados em cargos estratégicos pelas posições extremistas e por pregarem valores religiosos

> CENSURA
Já se posicionou contra a censura. É pouco provável que compactue com teses como o cerceamento de produções de temática LGBT

> FINANCIAMENTO
Não deve asfixiar financeiramente o setor, apesar de já ter defendido em entrevista ao apresentador Pedro Bial uma participação menor do Estado na cultura, a quem caberia buscar maior apoio privado