Decano do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Marco Aurélio Mello está prestes a deixar a Corte, após 31 anos no cargo. No dia 5 de julho, Mello vai se aposentar e abandonará a toga uma semana antes de completar 75 anos. Chegou ao STF por indicação do então presidente Fernando Collor, de quem é primo, em 1990. Ao longo do tempo, Mello tornou-se um ministro com perfil incendiário. Recentemente, chegou a chamar o atual presidente do Supremo, Luiz Fux, de “autoritário” e o colega Alexandre de Moraes de “xerife” durante o julgamento sobre a revisão da prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ). Na pandemia, defendeu a autonomia de estados e municípios no combate ao vírus e foi crítico do negacionismo do presidente da República frente à doença. Em entrevista à ISTOÉ, o decano apoiou a instalação da CPI da Covid-19, responsabilizou Bolsonaro pela situação crítica do País na pandemia e atacou as últimas decisões tomadas pelo ministro Kassio Nunes Marques, indicado pelo presidente ao Supremo.

Na semana passada, o STF determinou que o presidente do Senado instale a CPI da Covid-19. Por que isso só aconteceu depois de a Corte entrar no circuito?
O ideal seria a instalação espontânea. A CPI é um instrumental ao alcance da minoria. Tanto que os regimentos internos das duas Casas prevêem que é suficiente para a instalação requerimento subscrito por um terço dos integrantes do Senado. Evidentemente, não cabe menosprezar a manifestação desse um terço. Houve resistência no Senado, então, acionado o STF, o Supremo evidentemente sinalizou que o Senado não é terra sem lei.

Qual o balanço que o senhor faz sobre a relação entre STF e o governo federal durante a pandemia?
A relação é normal. Cada poder atuando em sua área, isso é importantíssimo na vida da pátria. E o Supremo agindo quando provocado. E tornando prevalecente o direito que foi aprovado pelo Congresso Nacional. No mais, nós temos muita retórica e pouca concretude em termos de tomada de providências visando combater esse mal que assola o País que já nos deixou muito tristes, com as mortes.

O senhor defendeu a análise dos pedidos de impeachment contra Bolsonaro. Hoje, existem mais de 100 na Câmara. Por que o senhor acha que isso ainda não aconteceu?
Na vida, especialmente profissional, eu observo muita organicidade. Observo muito a dinâmica. Ora, se há um pedido formalizado, o que se pode esperar é que ele tenha sequência. O desfecho é outra coisa. Agora, o que não dá e não é possível é represá-lo, numa postura de força. E aí ficando a sociedade sem uma satisfação. Por isso que eu penso que se tem que dar sequência ao pedido. E que, quem tem direito, que decida como deva decidir. É péssimo para o Brasil, principalmente, considerando a repercussão internacional, apear um presidente do poder. Sim, é péssimo. Mas não se pode, por isso, simplesmente fechar os olhos. E aí colocar-se na prateleira todo e qualquer requerimento que haja no sentido de afastá-lo. Que os representantes do povo, os deputados federais, e os representantes dos estados, os senadores, atuem. E atuem com desassombro. Por isso eu sou contrário a ter-se o esquecimento de requisição que é formalizada em termos. Há de dar-se a sequência e, aí, arquivar-se ou não é outro problema. Mas atuando aqueles que podem e devem, a tempo e modo, atuar.

Desde que chegou à presidência, Bolsonaro tem dito que gostaria de indicar um ministro “terrivelmente evangélico” para uma vaga no STF. O que o senhor acha disso?
Simples sinalização a um segmento que o elegeu. Um dos segmentos, já que ele teve 47 milhões de votos. O que nós esperamos, e eu espero, é que ele escolha o melhor, que forme na clientela, que possa chegar ao Supremo. E haja sabatina no Senado e que ele tome posse. E que, empossado, perceba a envergadura da cadeira. Nós temos no Supremo as 11 cadeiras mais importantes da República. Porque o Supremo tem a última palavra sobre o alcance da Constituição, que é guardiã da Constituição Federal, e busca torná-la concreta e eficaz. Agora, se será evangélico, católico apostólico romano, se será da comunidade judaica, isso não é tão importante. Colegiado é um somatório de forças distintas. No colegiado, os componentes se completam mutuamente, cada qual com sua formação técnica e especialmente, o que é muito importante, a formação humanística, já que as leis são feitas para os homens e não o inverso.

Recentemente, a PF intimou vários críticos a Bolsonaro a prestar depoimento, com base na Lei de Segurança Nacional. Qual a avaliação do senhor sobre isso?
Em primeiro lugar, não pode haver ranço. Tudo o que foi editado no regime de exceção não vinga no democrático. Essa visão é distorcida. Na ditadura, nós tivemos atos e atos. O Supremo, por exemplo, fulminou uma lei que já estava depurada, a lei de imprensa, e tivemos, até vir a ser aprovada uma nova lei, um vácuo. Eu, ali, fiquei vencido. Porque a lei já estava purificada, já estava depurada. Agora, se versa a problemática da LSN. Uma coisa é o conteúdo da lei. Outra coisa é a aplicação que se faça das normas nela contidas, que pode ser uma aplicação distorcida. Mas nem por isso prejudica o diploma, prejudica a lei. E, é claro, se terá sempre a última trincheira da cidadania, que é o Judiciário, para, no caso de uma distorção na aplicação da lei, ter-se o direito assegurado. Isso é o que é importante, isso que é democrático.

Decisões recentes do ministro Nunes Marques causaram desconforto em alguns ministros da Corte. O senhor mesmo chegou a classificá-lo como “assanhado”. Qual a relação do Supremo com ele? Por que suas decisões incomodam tanto?
Porque ele atuou num campo em que não poderia atuar sozinho. Em processo objetivo, o implemento da tutela de urgência é do verdadeiro Supremo, que é o plenário. Não é da turma. A turma não poderia implementar a tutela de urgência. Não é o integrante da Casa. É o colegiado. Ele deveria ter levado ao colegiado. O relator pode indeferir, mas não pode deferir. Para deferir, segundo a legislação de regência, tem-se que levar o processo ao plenário. Esse foi o dado. Agora eu vou repetir o que eu disse quando tivemos uma modificação substancial no governo do ex-presidente Lula na composição do Supremo. Não se agradece com a capa. Depois que se toma posse, evidentemente tem que se atuar com absoluta distância. Não se pode buscar querer agradar aquele que procedeu a indicação. No meu caso, por exemplo, o que eu fiz em relação aos processos de um primo, que foi apeado do poder, Fernando Collor. Não participei dos processos. Eu estava impedido. Era suspeito para participar? Não. Mas ninguém entenderia um voto num processo em que houvesse interesse direto do ex-presidente. Então me afastei. Agora, magistratura é opção de vida. E a pessoa tem que atuar com absoluta pureza da alma. O juiz não julga papéis. O juiz julga destinos.

A que o senhor atribui a situação dramática que o País vive hoje na pandemia? Há um responsável?
É difícil de início dizer que este ou aquele dirigente é o responsável. Mas nós aprendemos em casa, junto aos nossos pais, que o exemplo vem de cima. A postura negacionista do presidente não foi boa, foi uma péssima sinalização. Quando ele disse que teríamos uma gripezinha e que aqueles que não continuassem atuando normalmente seriam maricas. Evidentemente não cabe esse discurso por parte do presidente. Ele não incentiva uma postura de cautela, ao contrário. Aí então o brasileiro baixou a guarda e nós vimos o que vimos. Necessidade de a polícia intervir. E ela interveio, para acabar com festas, com aglomerados. Evidentemente isso é muito ruim. Hoje, eu creio que, a não ser que já tenha havido na própria família do cidadão um evento morte, a ficha do brasileiro ainda não caiu totalmente. Eu disse e repito: nós temos várias vacinas, mas a principal hoje é o isolamento. Aqueles que podem guardar isolamento, devem guardar esse isolamento. E recupera-se mais para a frente o tempo perdido na vida, considerada a convivência, considerada a prática de mercado.

Pesquisas mostram que cresce o número de pessoas que consideram Bolsonaro o principal responsável pelas mortes na pandemia. Parlamentares acusam o presidente de cometer crime de responsabilidade. Cabe esse tipo de acusação?
Acusação contra qualquer um de nós é sempre possível. Agora, se teremos ou não um resultado de glosa, de afastamento do cargo ocupado é outra coisa. Aí caberá ao órgão competente examinar a matéria e decidir. O que eu digo é que não é bom quando o presidente da República diminui a dimensão do mal que assola o País. O Brasil, mundialmente, tem 2,7% da população mundial. Mas, em número de mortes, tem 27% no mundo. Há algo aí em descompasso, algo que realmente é muito ruim.

Qual será o efeito que a decisão pela suspeição do ex-juiz Sergio Moro na Lava Jato vai causar na operação como um todo? Ela será totalmente anulada?
Em primeiro lugar, o sistema está capenga. O juiz Sergio Moro foi um grande juiz, sem dúvida alguma. E, de repente, ele passa de herói nacional no que buscou alcançar dias melhores na República, combatendo, sentenciando relativamente a corrupção, inclusive condenando pessoas com poder, a alguém completamente execrado. Eu, por exemplo, no passado, eu disse que não gostaria que Moro me sucedesse. Mas disse porque ele virara as costas sem direito à aposentadoria para a magistratura. Receberia a cadeira do Supremo como um prêmio, um prêmio de consolação por ter virado as costas. Mas, evidentemente, ele está na história como um juiz que realmente mostrou que processo não tem capa. Que processo tem conteúdo. E se um maioral, um poderoso, claudicou na arte de proceder no campo penal, deve responder pelo ato formalizado.

Qual o impacto nas mensagens da Operação Spoofing para a reputação da Justiça? O senhor acha que elas denigrem o Poder Judiciário?
Não. Não concordo. O diálogo, considerando os que atuam no Judiciário, como um grande todo, deve haver. Diálogo do Ministério Público com o juiz. Do juiz com o Ministério Público. Do juiz com um defensor ou com a defensoria pública, ou com advogado. Agora, claro, observados os parâmetros cabíveis, observada a humanidade. Não vi nada demais nos diálogos implementados pelo juiz Sergio Moro com o Ministério Público.