Olhem essa cachorra dormindo. Cachorra sonha com osso, nada mais natural; solta grunhidos, só não sei se esses sons em meio ao sono são de fome ou é a cabeça que se diverte com o próprio osso sonhado. Existe o osso roído sonhado e existe o osso roído acordado, mas necessariamente o primeiro não leva ao segundo. Já gente sonha com…
Deixe-se a coitada cansada dormir. Vamos falar de samba.

A primeira manifestação artística que ocorreu, em 1964, contra a ditadura militar, foi o antológico show “Opinião”, no Rio de Janeiro, com Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão. Um trecho da música tema diz: “podem até deixar-me sem comer/que eu não mudo de opinião/daqui do morro eu não saio não/se não tem carne/eu compro um osso e ponho na sopa, e deixa andar (…)”. É importante ressaltar que o “deixa andar” não significa, de forma alguma, desdém com a vida. Era um jeito de resistir: morador de favela sabia que tinha sido obrigado a morar no morro e ficar reduzido, muitas vezes, à água e ao osso, porque fora feita no início do século XX uma preconceituosa reforma higienista no Rio de Janeiro. Depois de tanto tempo, queriam os militares remover a população das favelas? Dessa vez, os pobres seriam levados para aonde? Nada disso: “eu compro um osso, e ponho na sopa, e deixa andar”.

A música está mais atual do que nunca, não somente nos morros, mas também nas grandes cidades e capitais de praticamente todo o País: Cuiabá, Belo Horizonte, Salvador, Vitória, Belém, Rio de Janeiro, São Paulo. Há milhares de pessoas que sonham acordadas com osso, porque dormir com fome, isso ninguém dorme não – nem a nossa cachorra do início do texto. Esses cidadãos sem cidadania sonham com osso de boi, de frango, de porco, sonham com osso e colado nele um restinho de carne, sonham com osso sem carne só para colocar na água e ferver, sonham com osso para filho roer “porque distrai o estômago que dói”, diz o escriturário desempregado José Carlos Santos, que tem perto de casa um “açougueiro amigo” para pegar… osso. Existem milhares de pessoas que comem os ossos do banquete do desgoverno federal, que jogou cerca de catorze milhões de brasileiros no desemprego, um milhão e novecentas mil pessoas na insegurança alimentar grave – a pandemia tem culpa, mas Bolsonaro também. “Olha meu jeito de fome, moço”, diz Maria Esmeralda, empregada doméstica desempregada, moradora na zona oeste de São Paulo. “Cachorro me olha com olhar comprido, quem tiver mais sorte leva o osso primeiro”. O sobrenome da senhora? “Põe não, moço”. Foto? “Não, não, tenho minha ‘sotisficação’ (sic) de vaidade”. De que adianta ferver o osso na água? “Sai coisa dele, fica engordurada”.

“O desenvolvimento e a paz social têm dois indispensáveis ingredientes: o pão e o amor” Josué de Castro, cientista político, em seu livro “Geopolítica da fome”

No Rio de Janeiro, aproximadamente dois milhões e seiscentos mil indivíduos, o equivalente a 15,1% da população do estado, estão em situação de pobreza. Quantos chegaram ao ponto de comer osso? Não se sabe. Na cidade, que guarda uma beleza de alimentar os olhos, há um caminhão que distribui ossos no bairro da Glória – bairro da Glória onde morou, já adulta, a Capitu de Machado de Assis, bairro da Glória que foi o florescer da aristocracia, bairro da Glória que teve o primeiro hotel cinco estrelas do País e recepcionou vinte chefes de Estado, bairro da Glória com o magnífico monumento a Luiz de Camões. Bairro da Glória, agora, do caminhão de ossos. Tudo são os duros restos do festim do governo federal. Em Cuiabá, açougues dão ossadas – antes, era uma vez por semana; hoje é todo dia. “A desigualdade social e a concentração de renda são males estruturais do Brasil. A fome, conseqüência direta, espalhou-se pelo País”, diz o historiador Marco Antonio Villa, autor do livro “Vida e morte no sertão – histórias das secas no nordeste nos séculos XIX e XX”. “São dois os ingredientes do desenvolvimento e da paz social: pão e amor”, escreveu o cientista político Josué de Castro, em “Geopolítica da fome”. Em Santa Catarina, não tem doação não: quer osso, tem de pagar R$ 4,00.

“Moço, tem osso com gordurinha?”. A cada dois dias, Natália Valério da Silva, autônoma, desempregada, moradora na zona leste de São Paulo, faz essa pergunta no açougue. É a sua pergunta padrão, é a pergunta padrão dos famintos brasileiros, dessa gente honesta e sonhadora…, mas, olhe, leitor, a nossa cachorra, a cachorra lá do começo acordou… vem cá “Baleia”!… Vou apresentá-la: ela é a cativante “Baleia”, da obra de Graciliano Ramos, é a “Baleia” que, segundo Graciliano, de tão magra dava para contar as suas costelas – e que, quando dormia, “sonhava com osso”. É a “Baleia” que a gente ama, assim como a gente ama essa gente que, bem disseram Vinícius de Moraes, Chico Buarque e Aníbal Sardinha, “vai em frente sem nem ter com quem contar”.

Colaborou Fernando Lavieri