Enquanto em dezembro de 1968 diversos países democráticos comemoravam duas décadas de vigência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, escrita pelo jurista canadense John Peters Humprey, adotada pela ONU e apresentada ao mundo pela ex-primeira-dama americana Eleanor Roosevelt, no Brasil centenas de pessoas que se opunham à ditadura militar começaram a ser sequestradas por agentes dos porões do regime de exceção. Ao sequestro seguiam-se tortura e morte. Isso passou a acontecer no País já na própria noite de 13 dezembro daquele ano, uma sexta-feira, quando o então ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva anunciou que o governo decretara o Ato Institucional número cinco, o tragicamente famoso AI-5. Às vésperas do Natal, não era um dezembro dos anos dourados, era dezembro cor de chumbo. A repressão se tornou bem mais doida e doída.

O regime militar se instaurara no Brasil por meio de um golpe de Estado em 1964, apeando do poder o estancieiro João Goulart, democraticamente eleito pelo povo. Quatro anos depois, com o AI-5, veio o golpe dentro do golpe: o Congresso foi fechado, a imprensa se viu censurada, o habeas corpus e demais garantias fundamentais ficaram suspensas. Fez-se o escuro político que só teve fim com a redemocratização, em 1985. Os militares justificaram a medida draconiana porque cresciam as manifestações e a luta armada contra o regime, e também, hipocritamente, em nome da moral e dos chamados bons costumes. Agora, ao longo de 2019, assistimos ao deputado federal Eduardo Bolsonaro (um dos filhos do presidente da República), e, depois, ao ministro da Economia, Paulo Guedes, ameaçarem a Nação com a volta do AI-5, caso ocorram aqui manifestações de rua contra o governo, a exemplo das que acontecem no Chile e na Bolívia. Eduardo, um parlamentar, quer um ato institucional que feche o Parlamento. Guedes, que se diz conservador e liberal, e, portanto, deveria zelar pelas garantias fundamentais, ameaçou bani-las. Deplorável a fala dos dois personagens.

É bom que Guedes e Eduardo saibam: o AI-5 matou uma jovem com uma circunferência na cabeça que lhe esmigalhou o crânio. Seu nome: Aurora

As “confissões” de Rousseau

A reação do Poder Legislativo às declarações de Eduardo e Guedes foi imediata, por intermédio do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e também imediata foi a reação do Poder Judiciário, na voz de Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal. Assessores do deputado e do ministro deram vãs justificativas, mas o fato é que a gravidade do que fora dito estava consumada. Gravada. Postada nas redes sociais. A pergunta que inevitavelmente pendula em nossas cabeças é a seguinte: há condições políticas, sociais e institucionais de se restabelecer o AI-5. O repúdio de primeira hora de um poder constituinte originário e de um poder derivado mostra que não existe a menor chance. Somem-se a isso as atitudes de reprovação de diversas entidades da sociedade civil. Os que sonham em dar pesadelo aos brasileiros podem tirar o cavalo da chuva, o País atual é bem diferente daquele da década de 1960: pelas redes sociais, hoje, as ruas se tornariam um mar de gente em uma hora — oceano a afogar qualquer tropa de choque.

Eduardo e Guedes se referiram diretamente aos protestos que tomam conta do Chile, sem perceberem que a velocidade de sua propagação se constitui, justamente, no primeiro indicador de que o AI-5 nunca mais: tanto aqui quanto para os chilenos, esmagados que foram pela sangrenta ditadura de Augusto Pinochet. Agora, em 2019, as passeatas em Santiago mostraram que, a partir da convocação para protestos pontuais contra o aumento da tarifa do metrô, o movimento se transformou em uma luta contra o establishment. A repressão foi de matar, de cegar olhos com bala de borracha, mas, ainda assim, a população continuou nas ruas, sobretudo na antiga Praça Itália, batizada novamente, pelo povo, como Praça Dignidade. E há outras manifestações. Citemos as da Bolívia, que levaram à queda do presidente fraudador de votos Evo Morales, a revolta semanalmente periódica dos coletes amarelos na França, as crescentes passeatas em Hong Kong, que já mobilizam mais de um milhão de pessoas. Todas elas provam que a praça é do povo — frise-se, da majoração do preço de passagens de transporte público passa-se a protestar contra o establishment, assim como, no século XVIII, o aumento no preço do pão levou à Revolução Francesa, um dos principais marcos civilizatórios da humanidade. Referindo-se aos camponeses famintos, Maria Antonieta, consorte de Luis XVI, teria dito a perversa frase: “se não têm pães, que comam brioches!”. Ao lermos as “Confissões” de Jean Jaceques Rousseau, escritas em 1762, quando Maria Antonieta tinha nove anos de idade, já nessa obra está a tal frase — ou seja, não foi ela quem a proferiu, mas a ela o povo atribuiu a fala e sua cabeça rolou guilhotinada.

Eduardo Bolsonaro é um deputado federal. Ele sugeriu um ato institucional que fecharia a própria Câmara para a qual foi eleito. Absurdo

O status quo não resistiria

Um novo AI-5 no Brasil seria como um vírus combatido por verdadeira tempestade do sistema imunológico a afetar todo o organismo. O status quo não se manteria; o governo que o propuser, cairá; o déspota que defendê-lo será execrado. Não há mais espaço para atos institucionais. E, se no Brasil, os que falam nostálgicos do AI-5 o fazem para banalizá-lo, aí estão mais loucos ainda. Aos que tentam a sua banalização, lembremos que sob o império do AI – 5 muita gente desapareceu como se tivesse sido abduzida por extraterrestres. Talvez o deputado Eduardo e o ministro Guedes não saibam, mas é bom saber que tal instrumento de exceção matou uma jovem, torturando-a com uma circunferência de ferro enfiada em sua cabeça — o círculo ia se fechando por meio de um parafuso até que esmigalhou-lhe o crânio. E matou um jovem, acoplando o escapamento de um jipe a sua boca. Ele se chamava Angel; ela, Aurora.