O governo dos Estados Unidos protagonizou o debate público dos últimos dias ao realizar voos de deportação em massa de imigrantes latinos que viviam no país sob condição irregular. A medida era colocada em prática no governo de Joe Biden, mas foi reforçada por Donald Trump desde seu discurso de posse no retorno à Casa Branca.
O republicano promete devolver todos os estrangeiros que estão nos EUA ilegalmente a seus territórios de origem. O caminho para isso, no entanto, passa pelas mãos e canetas de outros líderes.
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No domingo, 26, o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, anunciou que não receberia deportados e acusou o governo americano de tratar os imigrantes de forma degradante. Em reação, Trump prometeu ampliar ostensivamente as tarifas para produtos colombianos. O chefe de Estado latino recuou.
Na mesma data, brasileiros deportados pousavam em solo nacional algemados, acorrentados e relatando agressões nos voos arranjados pela Casa Branca. Mas o Palácio do Planalto reagiu em temperatura menos elevada do que o presidente vizinho.
Em nota protocolar, o Ministério das Relações Exteriores criticou o uso de algemas e correntes e, na segunda-feira, 27, convocou o encarregado de negócios da Embaixada dos EUA a prestar esclarecimentos sobre a conduta. Um dia depois, prometeu montar um posto de acolhimento humanitário para os imigrantes.
O chanceler Mauro Vieira afirmou que aviões da FAB (Força Aérea Brasileira) não serão usados para deportações e deixou a responsabilidade pelo processo a cargo de Washington. Publicamente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não tocou no assunto e evitou indisposições com seu segundo maior parceiro comercial.
O termômetro da resposta
Para interpretar a proporcionalidade da reação brasileira às ações americanas e como isso impacta as relações entre as duas nações, o site IstoÉ entrevistou dois professores de relações internacionais e estudiosos da diplomacia brasileira.
— Marcos Cordeiro Pires, professor de economia política internacional da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e pesquisador do INCT-INEU (Instituto Nacional de Estudos sobre Estados Unidos)
— Regiane Bressan, professora de relações internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo)
— Tomaz Paoliello, coordenador do mestrado em governança global e formulação de políticas internacionais da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica)
O governo brasileiro evitou se posicionar de forma mais dura a respeito das deportações americanas. Além das relações comerciais com os EUA, o que mais explica essa postura?
MCP É preciso considerar a lacuna de capacidades do Brasil frente aos EUA. Os poderes estruturais norte-americanos podem afetar positiva ou negativamente os interesses de qualquer outro país do mundo e, neste contexto, o governo Lula é consciente de que não pode fazer nada para influenciar as decisões soberanas de Trump.
Compreendendo a forma de liderança exercida pelo presidente americano e como a polêmica alimenta sua máquina de propaganda, não seria oportuno criar pontos de atrito em que os interesses nacionais não estivessem em jogo. A deportação de imigrantes ilegais é uma prerrogativa dos EUA. O que o Brasil pode fazer é tentar encontrar meios para tornar esse processo mais humano e menos traumático no traslado.
Em termos de política internacional, vale lembrar, não há princípios inegociáveis, mas interesses. As ações de um governo [neste sentido] precisam ir além da verborragia e ter consequências práticas. Qual peso um país pode, individualmente, ter na formulação das políticas dos EUA, tendo em vista que nem mesmo a Assembleia Geral da ONU [Organização das Nações Unidas] exerce esta influência?
Para um país periférico como o Brasil, a alternativa mais adequada é se articular com outros em situação similar, como os Brics [grupo que inclui nações como Rússia, Índia, China e África do Sul], e produzir condições para reduzir a própria dependência em relação aos EUA. Fora disso, há bravatas.
RB A postura do presidente Lula de não se manifestar diretamente sobre os episódios pode ser compreendida dentro de um contexto estratégico e pragmático. Desde a eleição de Trump e a retomada de uma relação mais institucionalizada e diplomática com os EUA, Lula tem adotado uma postura cuidadosa e diplomática, evitando confrontos diretos com a administração americana.
Além da preservação das relações comerciais com o país, Lula tem buscado resgatar o protagonismo do Brasil no cenário internacional, com foco em temas como mudanças climáticas, questões sociais e geopolítica. A gestão do relacionamento com os EUA, portanto, não pode ser vista apenas sob o prisma das deportações ou ações de imigração, mas também como parte de uma estratégia de inserção do Brasil em outras dinâmicas globais.
Em um cenário político interno polarizado, qualquer ação mais incisiva contra os EUA poderia ser vista como um posicionamento ideológico, o que poderia gerar divisões internas ou até enfraquecer a governabilidade. A crítica ao uso de algemas e correntes nos voos, no entanto, é uma postura mais alinhada aos princípios que sempre estiveram presentes no discurso do presidente. Ela possui um caráter humanitário e visa não apenas preservar a imagem do Brasil como um país que respeita os direitos humanos, mas também reforçar a ideia de que, mesmo mantendo um relacionamento pragmático com a Casa Branca, o Brasil não abrirá mão de defender normas mínimas de dignidade e respeito nas tratativas internacionais.
TP O governo Lula adotou uma posição crítica ao tratamento dispensado aos deportados brasileiros, o que não se distinguiu tanto assim das alegações colombianas. Acontece que não havia premissa para transformar esse episódio em uma crise diplomática, em primeiro lugar, porque as deportações não são uma novidade. Elas já aconteciam em governos que antecederam Trump e, portanto, podem ser tratadas de forma mais habitual pelo Itamaraty.
Em um momento delicado, de transição, e de uma relação que se desenha com potencial para complicações futuras [entre Lula e Trump], cabe à diplomacia brasileira adotar uma posição de cautela, como foi demonstrado nesse caso.
Esse posicionamento foi bastante distinto do exercido pelo presidente da Colômbia. Faltou alinhamento aos dois governos latino-americanos neste caso? Ou não havia espaço para isso?
MCP O governo mexicano, na figura da presidente Cláudia Sheinbaum, foi o que reagiu mais fortemente à truculência das deportações, ao traçar linhas para o recebimento de cidadãos mexicanos e não admitira a recepção de cidadãos de outros países.
No caso da Colômbia, apesar da contundência dos argumentos, as ações de Petro foram inócuas, dando margem a um recuo por conta das pressões de uma elite local historicamente vinculada aos EUA. Por fim, como demonstra o cancelamento da reunião emergencial da Celac [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos], não existe articulação latino-americana nesse tema ou em outros, até mais importantes.
RB Brasil e Colômbia compartilham interesses comuns com os EUA, especialmente nas áreas de comércio, segurança e política externa, mas uma das razões principais para a diferença entre as posturas de Lula e Petro no caso é a abordagem ideológica de cada líder.
Embora tenha um histórico de críticas aos EUA, Lula tem se mostrado mais pragmático, equilibrando a crítica com a necessidade de manter boas relações diplomáticas e comerciais, especialmente em um momento em que o Brasil busca recuperar sua posição econômica e política internacional. Por outro lado, Petro preserva uma postura mais combativa e alinhada com uma agenda de esquerda mais radical, o que o leva a se posicionar de maneira mais assertiva contra o que vê como violações de soberania e direitos humanos.
Outro fator importante é o impacto interno das deportações em cada país. A Colômbia tem enfrentado um aumento significativo no número de migrantes e refugiados, o que torna a questão da imigração uma pauta mais sensível para o governo. Para o presidente brasileiro, por outro lado, o foco é recuperar a economia e garantir um bom relacionamento com os EUA, com uma agenda que visa estabilidade e atração de investimentos.
TP Há um bloco de países que não são alinhados aos EUA, mas não são frontalmente opositores aos americanos, como seriam Cuba ou Venezuela. São nações que buscam manter relações comerciais com a Casa Branca, mas não exercem um alinhamento político. Brasil e Colômbia navegam nessa posição pragmática, e têm uma sinergia relevante do ponto de vista da política externa.
Há uma proximidade [entre os dois governos] nas posições e na reação diplomática às mudanças promovidas pelo governo Trump. Dentro dessa aproximação, Petro se recusou a receber os colombianos nas condições de maus-tratos em que o governo americano os transportava, ao contrário do que fez Lula. A diferença é que Petro deu, em especial, uma demonstração de força, o que não cabia ao presidente brasileiro nas circunstâncias.