Sequestro de crianças, desaparecidos da ditadura, machismo da sociedade… Em Cannes, muitos filmes exploram os males da América Latina e revisitam seu passado doloroso, com holofotes em países até agora não muito visíveis no mapa do cinema mundial.

É o caso da Guatemala, com o primeiro filme de César Diaz, “Nuestras madres”, sobre os desaparecidos durante os 30 anos de guerra civil, que deixaram 200 mil mortos ou desaparecidos entre 1960 e 1996, principalmente entre a população maia suspeita de apoiar a esquerda guerrilheira.

“Falamos muito sobre a ditadura no Chile, na Argentina, mas não sabemos nada da ditadura na Guatemala”, diz o diretor, filho de um desaparecido político. Ele é o primeiro cineasta da Guatemala na Croisette.

Apresentado na Semana da Crítica, seu filme segue os passos de Ernesto, um jovem antropólogo responsável por identificar pessoas desaparecidas a partir de ossos. Um dia, ele acredita ter encontrado o rastro de seu pai, um guerrilheiro que desapareceu durante a guerra. Se o filme não é tão forte quanto o tema, destaca a profusão de temas relacionados à história recente dessa região do mundo.

É também o que faz a peruana Mélina Leon, a primeira mulher de seu país a estar em Cannes (Quinzena de Realizadores), com “Cancion sin nombre”, um belo filme em preto e branco que inevitavelmente lembra “Roma” de Alfonso Cuaron, premiado com o Leão de Ouro em Veneza e três Oscar.

O título do filme refere-se à canção de ninar que Georgina (Pamela Mendoza) não poderá cantar para seu bebê, sequestrado pelo hospital particular onde ela deu à luz. Isolada, frente uma administração corrupta, conta com a ajuda de um jornalista.

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Um primeiro filme, que pinta um retrato intransigente do Peru dos anos 80, entre os ataques do Sendero Luminoso, o rapto de recém-nascidos e a repressão a homossexuais.

Inspirado por fatos reais, não esquece uma certa poesia e filma o personagem de Georgina caminhando todas as manhãs no meio do nevoeiro, para chegar à capital e vender batatas. “O nevoeiro é algo típico em Lima, mas também é a ideia de que são pessoas que não vemos”, ressalta a diretora.

– Bolsões de resistência –

Um tema que ecoa o filme do brasileiro Karim Ainouz, “A vida invisível de Eurídice Gusmão” (Um certo olhar). Uma evocação do machismo através do destino de duas irmãs que não podem viver seus sonhos, por causa do peso da sociedade. Nos anos 50, no Rio de Ainouz, uma mãe solteira não podia deixar o país com o filho sem a autorização do pai.

“Tive a impressão de que as coisas tinham mudado para as mulheres nos últimos 30 anos, mas com o que está acontecendo politicamente no mundo e no Brasil, vejo um retrocesso”, estimou o cineasta, que não queria tornar seus personagens “vítimas”.

“Eu quero explorar as possibilidades de resistência – é a coisa mais importante no cinema de hoje: mostrar que é preciso resistir e dar esperança”, disse, na mesma linha de outro cineasta brasileiro em Cannes: Kleber Mendonça Filho, em competição com “Bacurau”.

Mais conhecidos no meio cinematográfico mundial, o chileno Patricio Guzman e o argentino Juan Solanas também escolheram despertar suas consciências, optando por documentários.

O primeiro, filmando a mineração de uma parte da Cordilheira dos Andes, uma maneira de retornar ao tempo da ditadura de Pinochet (1973-1990) em “La Cordillera de los Sueños” (Sessão especial). O segundo percorreu durante oito meses a Argentina para “Que sea ley” (fora da competição) sobre o esforço das argentinas em 2018 reivindicando o direito ao aborto.

A projeção deu origem, no sábado, a uma mobilização em verde nas escadarias do Palais des Festivals, cor da luta pela legalização do aborto na Argentina.


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