O novo coronavírus despertou um efeito colateral inesperado na Itália. Enquanto chora pelos seus mortos e luta para combater a pandemia, o país foi surpreendido com a notícia de que seus mais perigosos criminosos foram tirados da cadeia para cumprir pena em prisão domiciliar. Trata-se de 376 detentos, alguns que estavam em celas de segurança máxima, integrantes da cúpula das poderosas máfias italianas e de redes sofisticadas de tráfico internacional de drogas. Além deles, a medida abriu brecha para outros 6.000 presos solicitarem o benefício e fundadores de clãs que dominam o crime organizado no país. A transferência apavorou a população por significar um abrandamento do cerco aos criminosos. A questão é complexa porque envolve a Constituição italiana, que garante a todos os cidadãos o direito à saúde. Como os presos transferidos possuem idade avançada e comorbidades que podem levá-los à morte caso contraiam a Covid-19, seus advogados alegaram que mantê-los encarcerados os privariam de seus direitos. O país é o terceiro do mundo em número de vítimas da pandemia, com mais de 32 mil mortos e 227 mil infectados.
Entre os mais notáveis figurões que conseguiram sair do regime de isolamento total está Francesco Bonura, de 78 anos, substituto de Bernardo Provenzano, o capo de todos os capos da máfia siciliana, a Cosa Nostra. Além dele, Pasquale Zagaria, de 60 anos, irmão de Michelle Zagaria, chefe dos Casalese, da poderosa máfia Camorra, estabelecida em Nápoles e na Caserta. A máfia ‘Ndrangheta, que se estrutura principalmente por laços sanguíneos, teve Vincenzo Iannazzo, de seu primeiro escalão, transferido ironicamente para junto de sua família na cidade Lamezia, na Calábria, região que é o coração da máfia. Além dele, Franco Cataldo, que cumpre prisão perpétua por sequestrar um garoto de 13 anos e tê-lo dissolvido em ácido a mando do capo Totò Riino, da Cosa Nostra.

A Constituição italiana garante o direito à saúde, mesmo envolvendo mafiosos, e a justiça entende que os criminosos correm risco nas cadeias

Briga política

Diante do abrandamento da vigilância aos mafiosos, o ministro da Justiça, Alfonso Bonafede, importante nome do partido governista Movimento 5 Estrelas (M5S), foi duramente criticado. Um outro motivo que levou à autorização foi a pressão dos protestos que ocorreram em 27 presídios do país, em março. Revoltados com as normas restritivas impostas para evitar a transmissão da Covid-19, os detentos realizaram rebeliões que acarretaram na fuga de dezenas de pessoas e na morte de 13 detentos. Outro problema que influenciou na medida é a superlotação que o sistema carcerário sofre: o país possui mais de 60 mil presos, mas o sistema só tem capacidade para 46.875. Mesmo assim, a oposição pressionou pela demissão de Bonafede, sob o comando do senador Matteo Salvini, ex-ministro do Interior. A luz amarela também se acendeu na promotoria antimáfia. Afinal, colocar os figurões em seus territórios permite que eles se fortaleçam, porque podem retomar suas redes de contatos, a base de seu poder. E ainda: fora da cadeia, os criminosos conseguem fugir com muito mais facilidade, pois possuem influência e poder econômico. Para garantir o cumprimento da Carta Magna, e ao mesmo tempo não enfraquecer o combate às máfias, os críticos reivindicam alternativas, tais como transferi-los para centros com proteção sanitária e segurança máxima.

Sob pressão, o ministro Bonafede está voltando atrás e aprovou um decreto-lei revertendo a decisão e permitindo aos juízes reavaliarem a prisão domiciliar a partir de consultas ao Departamento de Administração Penitenciária e órgãos sanitários. A ideia é verificar se há estruturas adequadas que garantam a proteção à saúde dos detentos e que garantam a segurança da sociedade. Na semana passada, algumas prisões domiciliares já foram revogadas pelos tribunais, como de Francesco Bonura, da máfia siciliana Cosa Nostra. Agora a sociedade espera que os mafiosos voltem às prisões, principalmente nesse período de pandemia, no qual fica ainda mais vulnerável aos caros “favores” oferecidos pelo crime organizado.

O figurão da Cosa Nostra

Divulgação

Um dos nomes mais marcantes da máfia siciliana, Cosa Nostra, foi Tommaso Buscetta (1928-2000). Conhecido como Don Masino, ele entrou para a máfia muito cedo, aos 20 anos, como chefe da família Porta Nuova. Após uma guerra pelo poder na máfia, ele fugiu para o Brasil e foi extraditado duas vezes para a Itália. Apelidado de “o traidor”, foi o primeiro mafioso a colaborar com a Justiça e testemunhar contra a organização.