São muitos Genivaldos no Brasil. Pobres, pretos, desvalidos, com a saúde precária, desassistidos, desprezados, colocados numa vala de “gente de segunda categoria”. São muitos Genivaldos no Brasil. Que sofrem preconceitos, todos os dias, de diversas maneiras, relegados quase sempre ao pé da pirâmide social, renegados, na maior parte das vezes sem direitos, nem os mais básicos que delimitam a cidadania. São muitos Genivaldos no Brasil. Sem acesso a emprego, à educação, a transporte decente, para quem as Leis parecem mais rigorosas e implacavelmente aplicadas, sem apelação, em muitos casos injustamente. São muitos Genivaldos no Brasil. Executados, presos, equivocadamente confundidos com marginais pela cor da pele, baixa renda, roupas que vestem. Os Genivaldos podem ser arrancados em uma blitz policial tanto de um carro de luxo – por que, para alguns, não merecem estar ali –, quanto de motos básicas, modelo antigo, por delito simples, como o do não uso de capacete. E são executados, imobilizados, algemados, xingados e até…asfixiados em câmaras de gás improvisadas dentro de um camburão.

Monstruosidade indescritível, e aconteceu com um desses Genivaldos. À luz do dia, publicamente filmado. Para todo mundo ver. Genivaldo de Jesus Santos não teve chance. Gritando por socorro, com as pernas finas se debatendo em desespero para fora da viatura em meio a uma nuvem de fumaça tóxica, morreu tal qual um verme abatido por inseticida. Genivaldo, brasileiro de Sergipe, ser humano, pai de família, com um diagnóstico de doença mental, não havia cometido nada além da mera infração por não usar capacete. E daí que mataram ele? Era apenas mais um Genivaldo. Faz parte! O presidente do País em que vivia Genivaldo costuma se exibir serelepe em motos, também sem capacete, com uma frequência espantosa a despeito das Leis, impunemente e até, quase sempre, escoltado, apoiado por comboio policial que nem dá bola para o seu delito. Bolsonaro, mandatário, branco, capitão, poderoso, “mito”, ocupante do topo da pirâmide social, pode. Como não? Imagina cobrá-lo por isso ou até multá-lo? Suprema ousadia! Quem o fizer vai, na certa, arranjar uma baita confusão e até perder o emprego de agente de segurança do Estado. Nem pensar! No País de Genivaldo, a desigualdade tem cara, método e valores firmemente consolidados. A pantomima de um mandatário que pode, sim, passear sem capacete no seu possante, em sobranceiro atrevimento, enquanto Genivaldo de Jesus Santos não consegue sem risco de vida, é um espetáculo cruelmente real. Menos de 48 horas após o ocorrido com o sergipano Genivaldo, lá estava de novo o chefe da Nação a pilotar (sem capacete) uma tropa de motoqueiros, na ilegalidade de pré-campanha eleitoral para reconduzir-se ao cargo pelas urnas. O mesmo Jair Bolsonaro havia se referido ao episódio com Genivaldo como quem tratava de uma ocorrência com um bandido, alegando que a mídia tomava “sempre o lado da bandidagem, sem olhar para o outro lado”. Qual deles? O dos algozes, que atendendo ao discurso de ódio do capitão, e agora animados pela proposta da “excludente de ilicitude” – que lhes tira da cabeça a ameaça de punições – fazem o que fizeram? Bolsonaro almeja ser capaz de abater à bala a miséria e as “vidas genivaldos” que incomodam tanta gente do andar de cima. Diz isso todo dia: quer “armar a população para defender a Pátria”. E quem seriam os inimigos na sugerida contenda? Talvez, no bang-bang rumo à barbárie que lima qualquer resquício civilizatório, os seguidores da seita do capitão se sintam à vontade. Mas as vítimas de tamanha delinquência não, e elas continuam a aumentar. De indígenas a pretos, pobres e caçados até por questão de gênero, os Genivaldos se amontoam. Que não restem dúvidas: o Brasil violento, radical e incompetente, que avança em escalada crescente, vem estampado no desgoverno que hoje emana do Planalto. Genivaldo de Jesus Santos tinha 38 anos. Era aposentado devido ao diagnostico de esquizofrenia. Sustentava a mulher, Maria Fabiana, e um filho de oito anos, a duras penas. Como ele, outros 26 pretos e pobres da comunidade da Penha, no Rio, foram abatidos sumariamente, dias antes, por batalhões da PM. Na investida, ao menos cinco inocentes, comprovadamente, figuraram na lista de vítimas. Em Sergipe, Genivaldo levantou a camisa, ergueu os braços para mostrar que não estava armado e, mesmo assim, foi golpeado para logo depois ser socado no camburão da morte. Vale dizer, os responsáveis da ação da PRF acabaram promovidos, reconduzidos para cargos nos EUA, em um doce exílio. Prendê-los, por quê? Não há razões para isso, como disse o delegado da PF, Fredson Vidal. Afinal, foi apenas mais um assassinato corriqueiro. Suprema ironia dos contrastes de tratamento a que estão sujeitas as inúmeras camadas populacionais desse Brasil grande. Boa parte por aqui ainda carrega o grito abafado a clamar contra as injustiças. Não encontra eco para superá-las. O establishment, a elite da Casa Grande, impõe sistematicamente as regras contra a Senzala escravizada e subjugada – como tão bem descrito na obra máxima do genial escritor e sociólogo pernambucano, Gilberto Freyre. A classe dominante sufoca os apelos para repartir o bolo. Ainda hoje, em pleno século 21, no Brasil de Genivaldo, de cada dez jovens mortos em ações policiais, oito são pretos. Nas prisões, o retrato do descompasso social que condenou Genivaldo é ainda mais alarmante. Acima de 70% dos que habitam a carceragem são também pretos, pobres e, frequentemente, esquecidos ou erroneamente acusados por crimes que não cometeram. A bandidagem dos senhores de colarinho branco, os grandes gatunos – que muitas vezes orbitam a esfera do poder –, esses jamais mofam por muito tempo atrás das grades e isso quando, remotamente, vão parar lá. Não há dúvida, como dizia o músico Cazuza, nossa piscina está cheia de ratos.

A simbologia contida no triste e irreparável evento da execução de Genivaldo não foi capaz de, por si só, mover ondas de indignação pelo País, como ocorreram tempos atrás nos EUA, quando da morte, também em circunstâncias descabidas, do americano George Floyd. Algo que diz muito da resignação e apatia com as quais os brasileiros se acostumaram a reagir em situações como essas. Floyd e Genivaldo foram asfixiados exatamente no mesmo dia, coincidência nefasta, com uma distância de dois anos a separar os dois casos. O policial responsável por sufocar Floyd foi condenado a uma pena de 22,5 anos de detenção e à multa milionária. A família de Floyd recebeu uma indenização de US$ 27 milhões. No Brasil…temos de estar mesmo condenados à indolência e soberba dos poderosos até não mais conseguir respirar? Não há nada de proselitismo, nem de simplório, na indagação. É a realidade crua e nua a qual a maioria está submetida. O Brasil que elegeu Bolsonaro e aniquilou Genivaldo institucionalizou uma desigualdade que chega a níveis macabros, insuportáveis. É hora de reagir aos extermínios sem sentido, aos preconceitos seculares, aos desmandos e impunidade. Em nome de Genivaldo – que foi abordado, revistado, preso e sumariamente condenado ao sufoco fatal em poucos minutos –, todo mundo precisa berrar, exigir, impor que venha uma resposta.