As imagens são impressionantes: mulheres e meninas iranianas cortam seus cabelos, queimam seus véus e andam pelas ruas de Teerã com a cabeça descoberta, desafiando a obrigatoriedade do Hijab por parte do regime teocrático que governa o país desde 1979. Mesmo com o serviço de internet sendo constantemente suprimido pelo governo, as cenas desafiadoras de protesto não podem mais ser ignoradas.

Um mês após a morte de Mahsa Amini, de 22 anos, em 16 de setembro, três dias depois de ter sido presa pela polícia moral do Irã por não cobrir o cabelo de maneira correta, o sentimento de revolta pelo autoritarismo do ato se espalhou por diversas cidades iranianas. Enquanto o número de mortes por lá sobe – já seriam cerca de 190, segundo estimativa da Iran Human Rights – mulheres do Irã seguem na luta e inspiram o mundo a fazer o mesmo.

Celebridades e mulheres anônimas cortam seus cabelos em uma tentativa de ampliar a voz iraniana e transformar a luta local em uma causa global. Enquanto algumas lideranças organizam marchas em grandes capitais europeias, outras usam as redes sociais para publicar vídeos de mulheres cortando partes de suas madeixas. A cena da política sueca Abir Al-Sahlani aparando o cabelo durante uma sessão do Parlamento Europeu em Estrasburgo foi potente. A cantora turca Melek Mosso usou o palco de seu show para fazer o mesmo.

Paula Burlamaqui
Marion Cotillard
Juliette Binoche
Carol Castro

Um grupo de atrizes francesas também levou as tesouras aos cabelos, desencadeando um fenômeno pelo país: Juliette Binoche, Marion Cotillard e Charlotte Gainsbourg foram algumas delas. No Brasil, celebridades como Eliane Giardini, Paula Burlamarqui e Carol Castro também usaram suas enormes bases de seguidores para espalhar a mensagem.

Se havia alguém que não estava inteirado do que está acontece no Irã, o assunto, de repente, se tornou viral. Os vídeos postados com a hashtag #HairForFreedom (Cabelo Pela Liberdade) são vistos com bons olhos pela iraniana radicada no Brasil, a cantora Mahmonir Nadim, que organizou um protesto na Avenida Paulista.

Ela e seu grupo se preparam para uma nova onda de manifestações. “O apoio do ocidente é muito importante, pois passa uma mensagem positiva para as mulheres que estão no Irã agora lutando para viver em liberdade. O mundo precisa saber o que está acontecendo”, diz.

Mahmonir conta que sua mãe, sua irmã e diversas amigas ainda estão no país. A ativista teme por elas: “Sempre que chega um vídeo de apoio, mandamos para as mulheres do Irã para que elas vejam que não estão sozinhas”, diz. Para fugir da ditadura, Mahmonir veio morar no Brasil em 2012. Ela não tem religião, não usa véu e é uma artista multifacetada – com total apoio do marido, iraniano com visão mais progressista.

Impacto no regime

Vindas do Irã, as imagens que circulam no TikTok, Twitter e Instagram impressionam quem está distante da situação. Uma das gravações mostra uma mulher cortando o cabelo sobre o caixão do irmão, durante seu funeral. As legendas afirmam que o parente foi morto enquanto protestava.

DE TODAS AS IDADES Movimento global: jovens europeias repetem o gesto das manifestantes iranianas (Crédito: Enrico Mattia Del Punta)

Outra foto que viralizou parecia mostrar uma jovem, com a cabeça totalmente raspada, de pé ao lado do túmulo de sua mãe, segurando o cabelo cortado em uma das mãos. Isso acontece porque o corte de cabelo tem fortes raízes na cultura persa e faz parte do ritual de luto. O Shahnameh, ou Livro dos Reis, é um poema épico de Ferdowsi que remonta a um passado de mais de mil anos. As lições e parábolas da obra são familiares aos iranianos modernos e continuam a fazer parte da cultura atual. Quando o herói Siyavash é morto, sua esposa, Farangis, corta o cabelo, assim como as mulheres que a acompanham.

Cientistas políticos e especialistas no regime do país dizem que os atuais protestos que estão acontecendo no Irã são distintos dos que aconteceram nos últimos anos. Dessa vez, a revolta pela morte de Mahsa Amini unificou os iranianos em linhas socioeconômicas, regiões geográficas, etnia e gênero, todos sob a bandeira dos direitos das mulheres e da necessidade de mudanças governamentais sistêmicas.

Os protestos, agora, devem entrar em seu segundo mês. Nessa nova fase, homens jovens já são vistos nas ruas Os trabalhadores das refinarias de petróleo iranianas se juntaram e anunciaram a realização de greves. Vale ressaltar que as paralisações nas refinarias de petróleo lembram um pouco a própria revolução iraniana, que ocorreu há quatro décadas. Na época, uma combinação de protestos em massa e greves de petroleiros e lojistas ajudou a levar o clero ao poder – a esperança das manifestantes é que aconteça o mesmo agora.

“O apoio do ocidente é muito importante, pois passa uma mensagem positiva para as mulheres que estão agora no Irã, lutando para viver em liberdade” Mahmonir Nadim, iraniana que vive no Brasil e organiza protestos na Avenida Paulista (com o microfone, acima) (Crédito:Vitor Serrano)

Para Tanguy Baghdadi, professor de Relações Internacionais, os acontecimentos ainda estão se desenrolando, ou seja, é difícil fazer uma previsão. “Não acredito que essas manifestações possam derrubar o regime, mas não se trata apenas em derrubar. Podem, sim, causar um enfraquecimento no governo, e há novas concessões que o Irã poderá fazer para contornar a situação”, diz. Com o recente falecimento da rainha Elizabeth II e do antigo líder da União Soviética, Mikhail Gorbachev, poucas figuras que ajudaram a escrever a história do século XX seguem vivas.

Uma delas é o aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã, no poder desde 1989. Aos 83 anos, há especulação e expectativa sobre como a transição de poder irá acontecer quando ele morrer. “Inevitavelmente teremos um novo aiatolá, mas essas manifestações podem impactar nesse momento de escolha. Quando olharmos para o futuro, poderemos ver o real peso que as mulheres iranianas tiveram nesse processo”, diz Baghdadi.

Um passado menos perverso

Antes da Revolução Islâmica, em 1979, as iranianas possuiam direitos semelhantes aos que as mulheres tinham em outras partes do mundo.

Centenas delas trabalhavam em administrações públicas, em cargos para os quais haviam sido eleitas. Milhões, portanto, faziam parte da força de trabalho do país. Era comum vê-las atuando como juízas, embaixadoras e policiais – era também permitindo usar minissaia e vestir camisetas com elementos da cultura pop.

PRÉ-REVOLUÇÃO Estudantes sem patrulha: antes de 1979, o Irã vivia um período de liberdade (Crédito:Divulgação)

O feminismo no Irã surgiu após a Revolução Constitucional Iraniana, em 1910, ano em que o primeiro periódico feminino foi publicado por ativistas. Entre 1962 e 1978, o Movimento das Mulheres Iranianas obteve grandes vitórias, como o direito ao voto, em 1963.

Elas também foram autorizadas a participar de cargos no governo e, em 1975, a Lei de Proteção à Família garantiu novos direitos para que incluiam o direito ao divórcio e à custódia dos filhos. Desde 1979 todos esses avanços foram restringidos e várias leis foram estabelecidas, como a introdução do véu obrigatório e um rígido código de vestimenta público.