Não é um pássaro, nem avião, nem o Super-Homem. É um balão meteorológico? Ou um espião? De certeza, somente que é um OVNI, porque a sigla também não quer dizer muito: apenas “Objeto Voador Não- Identificado”. Mas quando quatro desses adentram o espaço aéreo do Canadá e dos EUA neste início de fevereiro, para serem abatidos na sequência, começam especulações que envolvem até frotas de extra-terrestres prontas para invadir a Terra. Explicações da ficção científica à parte, os americanos não divulgaram qualquer dado mais objetivo sobre os pedaços do único balão recuperado, “pescado” no mar da Carolina do Sul. Se não revelaram por estratégia militar ou para esconder um mico de ter abatido um balão meteorológico gastando uma fortuna, dificilmente se saberá. Certo é que o histórico de tensões entre EUA e China, que já vêm acirradas há pelo menos cinco anos, ganhou um novo capítulo. E, de modo geral, países aliados dos dois lados agora devem redobrar a vigilância de seus espaços aéreos da “alta altitude”.

A defesa aérea americana entrou em alerta máximo no dia 4, quando o primeiro balão, reconhecido como chinês e que teria “indícios” de ser espião, foi abatido na costa leste, podendo ter sobrevoado a base militar de Billings, em Montana, no noroeste do país, que guarda mísseis balísticos intercontinentais. E Guam, ilha militarizada no Pacífico, assim como o Havaí, Estado americano. Foi lembrado que, ainda em 2019, o principal cientista do setor aeronáutico da China, Wu Zhe, falou a uma agência estatal que sua equipe havia lançado o dirigível Cloud Chaser (Perseguidor de Nuvens), que poderia voar em alta altitude (65 mil pés ou quase 20 mil metros), para fornecer alertas antecipados de desastres naturais, monitorar poluição, mas também se prestar a fins militares. Ele mesmo teria apontado em um vídeo o traçado percorrido pelo artefato, passando pela Ásia, norte da África e costa sul dos Estados Unidos.

RESCALDO Velame do primeiro balão abatido; não foi divulgada informação sobre o que levava na carga útil (Crédito:Divulgação)

Entre os dias 10 e 12, o segundo e o terceiro OVNIs surgiram na região do Alasca — um “do tamanho de um carro” e outro, cilíndrico (este, derrubado a pedido do Canadá). Um terceiro abatido caiu em um lago na fronteira entre os dois países. E antes da Força Aérea americana ter especulado sobre passagem dos balões chineses também pelo Oriente Médio e Afeganistão, John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, dizia que seus investigadores não tinham encontrado evidências de que esses três últimos balões estivessem ligados ao programa de vigilância chinês. Que poderiam ser “amigáveis e explicáveis”.

A China se apressou em declarar que o primeiro balão abatido pelos EUA, com carga calculada em 900 quilos e tamanho de três ônibus, era civil, com objetivos meteorológicos, e se desviou acidentalmente da rota esperada. E divulgou que, desde janeiro de 2022, balões americanos sobrevoaram seu território mais de dez vezes (o que foi negado pelos EUA). A China também relatou um OVNI na região de Rizhao, costa leste do país, no dia 12. Enquanto isso, o Uruguai enviava especialistas de sua Comissão de Recepção e Investigação de Denúncias de OVNIs, a Cridovni, atrás de denúncias sobre “avistamentos de lampejos no céu das Termas de Almirón, próximas da cidade de Paysandú”. No dia 15, a Ucrânia entraria na história, divulgando ter abatido seis balões russos.

TECNOLOGIA DE 2019 Imagem renderizada de dirigível construído por Wu Zhe, o melhor cientista aeroespacial chinês, que voa a quase 20 mil metros (Crédito:Divulgação)

Abate milionário

Como se as informações desencontradas não fossem suficientes, Glen VanHerck, general da Força Aérea responsável pela supervisão do espaço aéreo dos EUA, afirmou que não descartava atividades extraterrestres, porque os militares ainda não haviam identificado a origem dos três últimos OVNIs (UFOs, na sigla em inglês — e agora renomeados pelo governo como FANIs, Fenômenos Aéreos Não- Identificados, ou UAPs, em inglês). Karine Jean-Pierre, a porta-voz da Casa Branca, precisou chamar a imprensa para uma coletiva, e afirmar que “não há indicação de alienígenas ou atividade extraterrestre” no caso dos balões, assegurando: “Amei o E.T. [filme], mas vamos deixar isso para lá”.

Eduardo Valle, coronel brasileiro da reserva e autoridade em geopolítica aeroespacial, explica que não foi nada fácil e nem barata a operação que derrubou o primeiro balão, que que caiu no mar. “Primeiro, porque o objeto estava a 60 ou 62 mil pés, o que é muito alto (entre 18 e 20 quilômetros). Até um F-22, caça ultramoderno de US$ 80 milhões, teve de ser acionado. E com muito dificuldade para chegar lá, em condições precárias de combustível. Foi preciso ser reabastecido em voo, para chegar o mais perto possível do alvo e não errar, a uma distância que não é comum em combates aéreos”, diz o coronel. O míssil disparado, um Sidewinder AIM-9X, de última geração (orientado por radiação infravermelha de curto alcance), custa em torno US$ 400 mil, segundo o coronel.

Outro avião, para filmar o impacto do míssil na carga útil, participou da operação. E esse é outro mistério, porque normalmente a câmera vai no ventre dessas aeronaves, que voam no máximo a 55 mil pés — e o alvo estava bem acima disso (teria voado “de barriga para cima”?). Também foi preciso “caracterizar” que o míssil estava sobre o território soberano dos EUA e não no espaço aéreo “sem dono”. Mais ainda: como precisavam evitar que a carga útil caísse em terra (e causasse danos a civis), outros aviões e também um navio da guarda-costeira participaram da operação e dos cálculos minuciosos quanto a distâncias, angulações e condições meteorológicas, para que o objeto a ser abatido caísse no mar e dentro da zona americana, no máximo a 12 milhas da costa.

Agora, com os sobrevoos dos OVNIs chineses sobre os EUA, “os dois lados estão pisando em ovos”, observa o coronel. Tanto que no dia 3, antes mesmo da decisão do abate, Antony Blinken, secretário de Estado dos EUA, anunciou que adiaria sua viagem à China no fim de semana, ao classificar o lançamento do balão que sobrevoava o país como “inaceitável e irresponsável”. A China replicou, dizendo que o balão tinha fins civis e acusando os EUA de “hipocrisia”. E isso porque os dois países, que já foram aliados comerciais e agora se consideram concorrentes, precisam ao menos refazer uma base de relações, mais do que abalada depois da visita da deputada Nancy Pelosi em agosto passado, a Taiwan, que os chineses consideram seu território. Os temas principais a serem colocados à mesa são os semicondutores, mas também americanos detidos na China.

Espião escancarado

Se estivesse em missão militar, por que o balão não teria se autodestruído? Essa é uma questão, para o brasileiro Gills Vilar Lopes, também professor da Universidade da Forças Aérea (UNIFA) e pesquisador de estudos de guerra do King’s College de Londres. Em pleno século 21, existem opções com mais flexibilidade de manobra, por exemplo, para captação de informações por imagens ou fontes eletromagnéticas, e mesmo para se esquivar de inimigos ou detritos espaciais. Por que então utilizar balões, um “ativo aeroespecial” do século XIX? Além do mais, o objetivo da atividade de inteligência é não ser percebido, destaca o professor — o que não foi o caso. “Para trabalhar com segurança como espião, o balão não poderia ser detectado facilmente. Teria de estar a 25 ou 35 quilômetros de altitude, ainda acima desses que foram abatidos”, observa. “Sem capacidade de se camuflar ou autodestruir, destruindo as informações se for pego?… Isso chama muita atenção. Foge da literatura convencional ou de relatos de espionagem.”

O especialista em tecnologia de guerra comenta que um balão espião teria em sua carga útil uma ou duas câmeras para capturar imagens em alta resolução — e que fossem retransmitidas em tempo real. Precisaria de um dispositivo de autodestruição das imagens já transmitidas, que não ficassem armazenadas, no caso de ser pego. Também precisaria ter a capacidade de “se esconder” dos radares, ou de se camuflar, dependendo de seu material. Ou mesmo de enganar radares com a emissão de algum tipo de pulso eletromagnético. “Isso tornaria o ativo de espionagem mais eficiente”, comenta, lembrando que pouco se sabe, de “fontes abertas”, sobre o que foi recuperado do balão que caiu no mar. O máximo que observou pelas imagens foi uma placa dupla de energia solar. “Podemos especular que seja para os equipamentos da carga útil continuarem funcionando, sem necessidade de uma fonte de energia elétrica convencional. Mas essa é uma tecnologia usada há mais de 50 anos pela engenharia aeroespacial. Não tem nada de extraterrestre!”, brinca.

Balões espiões que se deixam pegar soa muito estranho, observa Vilar Lopes. “Ao mesmo tempo, em um mundo onde a guerra de narrativas ganha força, pode-se pensar que a China quisesse mandar recado aos EUA. Algo como:
‘A gente consegue entrar em seu território, ferir sua soberania pelo espaço aéreo’. E aí talvez os EUA tenham optado, na contramedida, por usar o que têm de melhor em caças de última geração, como os F-22 e F-16, e até um míssil de R$ 2 milhões. Na política internacional, é uma mensagem clara: se sua soberania for ferida, haverá alto preço a pagar, em termos bélicos, econômicos, políticos ou diplomáticos. Você projeta seu poder para quem quer enviar a mensagem”, comenta o especialista. “Mas seguiremos com essa pulga atrás da orelha por muito tempo…”