Entre idas e vindas, derrocadas e esvaziamento de poder e imagem, o governo Bolsonaro fala agora em contragolpe ao que chama de ameaça comunista dos opositores. Na invencionice, constrói um projeto de anarquia. Amarrota a Carta Magna. Desarranja a habitual harmonia entre poderes. Insufla, nas redes sociais, mobilizações para a tomada das ruas em um Sete de Setembro nada convencional, com o intuito de reviver o “Dia da Independência”, dessa vez customizado, a sua maneira e no proveito próprio. Espetáculo de baderna. Não dos desfiles cerimoniosos. De radicalização. Não das homenagens. O presidente tenta — está claro! — esgarçar ao máximo o tecido social. Tortura marcos da estabilidade em plena crise da pandemia. Parece não ter nada mais de importante a fazer (afinal, nunca pensou em governar de fato, para que se preocupar com o assunto nessa altura do campeonato, não é mesmo?). Está promovendo o inacreditável, o surreal, o inaceitável. A ideia de uma ruptura a qualquer preço, como alternativa à via democrática. Do modo mais claro e direto possível, o mandatário trata de inverter valores comumente encontrados por aqui, onde prevalecem traços de um povo majoritariamente ordeiro e pacífico. Até as eleições de 2022, pode esperar, será uma gangorra de emoções e sobressaltos. O plano em voga passa por um militarismo tacanho de certos setores simpáticos da caserna — poucos, mas estridentes —, pelo clientelismo e fisiologismo rasteiro de aliados parlamentares e, fundamentalmente, pelo ímpeto liberticida de aloprados seguidores. Esses sempre desprovidos de qualquer noção de respeito ao coletivo, movidos a extremismo cego. Tome-se o caso do sertanejo Sérgio Reis, que decidiu emprestar a pouca reputação musical que detinha para afrontar com palavras de ordem, ameaças e convocações de ataque os poderes Judiciário e Legislativo. Sem qualquer representatividade, o rapaz da porteira quis usar do berrante digital para mobilizar rebanhos — de caminhoneiros, de agricultores, de meros trabalhadores rurais — e, como disse ele, sacudir o País. Tomou uma invertida de jeito. A Justiça promete investigá-lo por incitação à violência e os supostos apoiadores disseram não se verem representados por ele. Sérgio Reis teve de recolher as asinhas. Amuado, choroso, lamentou ser mal compreendido. Mas o vídeo gravado e a mensagem nele contida não deixam margens a dúvidas. O bolsominion de carteirinha jurou vingar a derrota fragorosa do capitão na batalha pelo voto impresso — outra excrescência em andamento, devidamente brecada pelos parlamentares. A soma de populismo econômico, clientelismo, servilismo social e arrogância produz a barbárie. O Brasil ainda vive na era arcaica do presidencialismo de cooptação. E, para gastar mais com emendas eleitoreiras, programas assistencialistas, estruturas inchadas de servidores públicos e quetais, é preciso mexer no essencial. Cobrar imposto extra, suspender verbas de pesquisas, de universidades, de instituições como INPE e IBGE. Muitos enxergam um certo paralelismo entre o formato de gestão do americano Trump e o do nativo Bolsonaro. Dada à polarização sistemática, radicalização e até pela presença de gurus do fim do mundo como Steve Bannon e Olavo de Carvalho. Mas por aqui é diferente. Nos EUA de Trump, as Forças Armadas deram um basta decisivo às incursões ensandecidas do ex-presidente e se recusaram a compartilhar do furor autoritário do chefe, reiterando o juramento à Constituição. Os militares salvaram o Capitólio. Evitaram o desastre de seguir ordens de resistência na Casa Branca movidas pelos interesses pessoais e políticos de Trump. No Brasil paira, assustadoramente, a dúvida. Certos dignitários da farda flertam com o obscurantismo ao imaginar o capitão como o senhor das armas. Nada mais equivocado. As Forças devem obediência ao Estado, não ao governo, como bem rege a Lei. A Nação é soberana e o Poder Executivo está acima da mera figura do presidente da República. A manipulação do mandatário nesse sentido carrega as piores intenções e conspira contra as liberdades individuais. A caserna não pode, nem deve, embarcar na aventura arbitrária que ora o capitão promove. É fato, com essa turma de fanáticos não adianta a discussão filosófica sobre o papel dos poderes e a missão dos militares. Na letra da Lei, os movimentos lunáticos e insidiosos dos arrivistas precisam ser contidos. Afinal, essas células gravitacionais que orbitam em torno do bolsonarismo, especialmente por meios digitais, não irão parar enquanto não entenderem que há um sentido maior em torno da palavra democracia. O Brasil é muito mais que uma tribo ideológica submetida ao cacique, aos seus caprichos e desígnios. E é bom Bolsonaro se convencer logo disso.