Os assassinos da alma

Os assassinos da alma

Eugênio Bucci Do site Vida Boa A mágoa também faz um mal danado, e é da mesma família. A mágoa e o ressentimento. No fundo, tudo isso é veneno igual. A gente pode ver o ressentimento agindo sobre suas vítimas no meio da rua. Não, não se trata de briga, de discussão de semáforo, de bater no carro da frente, de insultos a vidro semiaberto. O ressentimento aparece no trânsito quando a gente vê alguém falando sozinho, na rua, a pé, ou no carro. O infeliz está de tal modo absorvido pela tensão que o corrói que ele ensaia, e ensaia em voz alta, gesticulando vigorosamente, e se dirige para o vazio. Naquele instante de possessão, o sujeito dispara a resposta que gostaria de ter dado àquele que o ultrajou e, na hora, não lhe ocorreu. Ou, pior, bem pior: a resposta que na hora devida ele não teve coragem de pronunciar. O ressentimento faz o sujeito reagir ao desaforo com dez minutos de atraso, um mês de atraso, dez anos de atraso. E ele fica assim, reagindo para o vazio, indefinidamente, por muito tempo. Isso é o ressentimento, o sentimento (quase sempre de indignação, de ofensa) que vem e não flui, não escoa, fica ali dentro, ecoando sem ter por onde escapar e gerar seu devido efeito externo. O ressentimento é o sentimento que se sente, sente-se de novo e se ressente. Transforma o cidadão numa gaiola e o bicho que ele prende nessa gaiola é um urubu fedorento. É uma droga, um líquido tóxico, exatamente como o senso comum diz que é. Ao ressentimento e à mágoa, só os muito fortes sobrevivem. Amargos. Para guardar uma mágoa que atravessa décadas, para segurar o tempo certo da vingança, o sujeito tem que ter uma fibra de aço, não é para qualquer um. Faz tão mal que ninguém guarda mágoa por gosto. Quase sempre, não há outra escolha. Quem guarda mágoa só guarda mágoa porque entrou nessa por distração, desavisado, e depois não teve como pular fora. Depois disso é duro. Ou você segura a onda, guarda a mágoa para dispará-la quando der, ou a mágoa acaba com você e você morre. Apenas morre. Não é para qualquer um. É ruim, tem uma linha direta com o inferno, com o que há de pior na vida (e na morte), e, por isso, não se recomenda que a pessoa guarde mágoa. Não se recomenda o ressentimento, igualmente. Mas tudo isso, tudo isso mesmo, tudo isso se resolve. Um dia, acaba se resolvendo. O que não tem jeito de jeito nenhum é a saudade. É um mal da língua portuguesa, como todos sabem. A gente só sente saudade em português. Não há muito o que elaborar a respeito. Lembro, sempre, de uma canção que, salvo engano, foi gravada também por Renato Teixeira. A música é creditada a Joubert de Carvalho e Olegário Mariano. O nome é “De papo pro ar”. Eu adoro isso, porque, para quem se viu condenado à saudade, cantar de papo pro ar pode representar uma esperança (mas, no fundo, não tem remédio). Leia o texto na íntegra O jornalista Eugênio Bucci é professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA ? USP) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). *Vida Boa é um novo espaço no mundo virtual com artigos sobre cultura, moda, beleza, comportamento, gastronomia e viagens.