SOFRIMENTO A dor da mulher de Evaldo, Luciana dos Santos: uma barbárie inaceitável (Crédito:Gabriel Paiva)
Gabriel Paiva

Festas populares, aniversários infantis e chás de bebês são eventos que fazem parte do calendário familiar brasileiro o ano todo. Só trazem alegria. São eventos de confraternização e paz. Porém, com a família do músico Evaldo Rosa dos Santos, 51, foi diferente. Em plena tarde de domingo, um passeio trivial se tornou uma tragédia brasileira. Tudo aconteceu por causa do racismo e da ação policialesca e destemperada do Exército. Sujeitos que deveriam ser controlados e treinados para não agir por impulso saíram dando tiros com o interesse claro de matar inocentes. O asfalto da Estrada do Camboatá acabou manchado com o sangue de Evaldo, executado por militares que deram 80 tiros de fuzil no carro da família. O local onde tudo ocorreu fica perto de uma Vila Militar, em Guadalupe, na zona Oeste do Rio de Janeiro. Os soldados que balearam o músico patrulhavam um condomínio de oficiais do Exército.

A morte de Evaldo é mais um triste exemplo da violência injustificável que assola as cidades brasileiras e da estupidez das execuções extra-judiciais, que têm sido estimuladas por políticos como o governador Wilson Witzel. Revela também que a intervenção militar no Rio tem mais efeitos colaterais nefastos do que benéficos e faz pensar que os militares são incapazes de atuar como polícia. Como ensinava o general Leônidas Pires Gonçalves, ex-comandante do Exército, “quartel não tem algemas”, querendo dizer que soldados não são treinados para operações policiais. Não há algemas porque não se prende, se mata.

VÍTIMA INOCENTE Evaldo sofreu um duplo assassinato. O segundo foi de sua reputação. O Exército divulgou uma nota em que dizia que ele e seu sogro eram criminosos e haviam atirado contra os militares. Não é verdade (Crédito:Divulgação)

Evaldo sofreu um duplo assassinato, o segundo foi de sua reputação. No dia seguinte ao crime, o Comando Militar do Leste (CML) divulgou uma nota em que dizia que Evaldo e seu sogro, que também estava no carro, eram criminosos. Ambos foram acusados de atirar contra os militares, que retribuíram a agressão. A nota é oposta às imagens divulgadas na internet, aos relatos das testemunhas e à realidade. Fizeram parte da execução doze militares, nove efetuaram os disparos. Dentro do carro estavam Evaldo, que dirigia, o sogro no banco de passageiro, também baleado e, no banco de trás, a companheira do músico, Luciana dos Santos, 27, o filho do casal, de sete anos, e uma amiga. Além de matar sem justificativa, os executores não prestaram assistência às vítimas. Ao ver que Evaldo estava gravemente ferido, Luciana começou a gritar por socorro aos próprios militares. “Moço socorro! Ele só levou um tiro. Por favor, socorre o meu esposo. Mas eles não fizeram nada. Nada. Ficaram de deboche”, contou.

“Não sou juiz da causa. Não estava no local. Não era a polícia militar. Não cabe fazer juízo de valor ou tecer qualquer crítica sobre o fato” Wilson Witzel, governador do Rio (Crédito:Divulgação)

A reação das autoridades não poderia ter sido mais lacônica. O presidente Jair Bolsonaro não publicou nenhum tuíte sobre o assunto. Por meio de seu porta-voz, Otávio Rego Barros, apenas disse que “acredita na Justiça Militar” e pediu “uma rápida apuração dos fatos”. Witzel declarou que “não me cabe juízo de valor”. Sergio Moro, ministro da Justiça, colocou em dúvida a ação. “Tem que ser apurado. Se houve ali um ato injustificável, como aparentemente foi, as pessoas têm que ser punidas”.
Um dos entraves para o esclarecimentos de fatos dessa natureza é que a apuração dos casos de violência envolvendo militares fica por conta da Justiça Militar. As Forças Armadas foram agraciadas com a lei 13.491, assinada por Michel Temer, em 2017, que repassou para a Justiça Militar, por exemplo, processos de mortes de civis provocadas por soldados em serviço. A sociedade não tem qualquer controle sobre esses processos. Um episódio exemplar de impunidade é o atentado no Riocentro, em 1981. O crime foi investigado duas vezes pela Justiça Militar, mas nunca esclarecido. No início do ano, o caso voltou a ser discutido no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ou seja, o temor é que a elucidação da execução em Guadalupe fique para as calendas e seja esquecida.

REVOLTA Familiares e amigos de Evaldo protestam na Vila Militar, em Guadalupe. Eles cobram justiça pela morte do músico (Crédito: Jose Lucena/Futura Press/Folhapress)

Inicialmente dez dos doze militares foram presos. Porém, na quarta feira 10, após Audiência de custódia, na 1ª Circunscrição da Justiça Militar, ficou decidido que nove continuariam presos — o único que ganhou liberdade provisória foi o soldado Leonardo Delfino, que segundo os depoimentos, não atirou. A juíza Mariana Campos afirmou que houve descumprimento das regras definidas pelo Código Militar. O Comando do Leste divulgou outra nota, lamentando o ocorrido, e chamando o assassinato de “incidente” e expressando condolências aos familiares e amigos de Evaldo.

Não por acaso a ação militar foi fortemente criticada. “Não há isenção na apuração”, afirma a deputada estadual Renata Souza (PSOL), primeira mulher negra a presidir a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Para ela, a política de segurança pública aposta na barbárie. É racista. “A cada dez mortes, sete são pessoas negras. A morte do Evaldo numa via pública foi algo desproporcional”, lamentou. Sua percepção ganha cada vez mais eco na sociedade. Para Jaqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense, o problema são as autorizações morais vindas de cima para baixo. “Quando as pessoas brincam de fazer arminhas, debochadas e cínicas, os agentes se sentem autorizados a cometer atos violentos”.

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“Se houve um ato injustificável, as pessoas têm que ser punidas”
Sergio Moro, ministro da Justiça (Crédito:Sergio LIMA / AFP)

Lamentavelmente, o crime que chocou o País não se tratou de um caso isolado. No sábado, 6, também em Guadalupe, na mesma região da Vila Militar, um rolezinho de dois jovens acabou em desgraça. Chistian Felipe Santana, 19, levou um tiro de fuzil nas costa e morreu. Ele estava na garupa da moto de um amigo menor de idade, que também foi atingido. Os jovens furaram a blitz do Exército.

A verdade é que os militares não têm contribuído para a pacificação do estado que continua marcado pela violência indiscriminada. Luciana dos Santos, esposa de Evaldo, tinha outra opção de percurso para chegar no chá de bebê, mas acreditava ser mais seguro passar pelo caminho onde estavam os militares. Sentia-se tranquila em passar por uma rua onde haviam agentes de segurança pública. Ledo engano. Não eram agentes de segurança. Era o Exército.


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