Se estivesse viva, Clara Nunes completaria 80 anos de idade nesta sexta-feira, dia 12, mesmo ano em que outros grandes da música popular brasileira- Gilberto Gil, Caetano Veloso, Paulinho da Viola e Milton Nascimento – também chegam a essa marca.

Clara, que morreu em 1983, teve contribuição fundamental por, além de ser a primeira artista mulher a parear venda de discos com os homens, colocar em debate, por meio de seu repertório, temas como a miscigenação brasileira e as religiões de matrizes africanas.

“Clara tem uma atemporalidade em sua obra e isso dá a ela um caráter mítico, meio eterno. Ela foi pioneira a se posicionar, e de maneira contundente, por meio de seu canto e suas vestimentas quanto às questões relacionadas ao preconceito étnico-racial”, diz o jornalista Vagner Fernandes, autor da biografia Clara Nunes – Guerreira da Utopia (2007).

Apesar desse importante legado, os projetos sobre Clara Nunes estão parados. No ano passado, a imprensa divulgou que a Globoplay estaria produzindo uma minissérie sobre a cantora. Ao Estadão, a plataforma diz que desconhece o projeto.

O jornalista Vagner Fernandes diz que foi procurado pela Globo para vender os direitos autorais do seu livro, mas, que ao tomar conhecimento do roteiro, achou que a abordagem de alguns fatos se daria de forma sensacionalista. A Globoplay disse mais uma vez desconhecer o assunto.

Apesar da negativa da plataforma em relação à minissérie, Marlon de Souza Sílvia, curador do Memorial Clara Nunes, afirma que também foi procurado por roteiristas e que forneceu material a eles. Segundo Sílvia, a Globo comprou os direitos do livro Clara Nunes nas Memórias de sua irmã Dindinha Mariquita, escrito por Maria Gonçalves da Silva, irmã de Clara, e Josemir Nogueira Teixeira.

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Fernandes tenta emplacar outros projetos com o legado de Clara. Um deles é uma fotobiografia. Ele ainda planeja montar uma exposição e, anos atrás, trabalhou no relançamento dos álbuns da cantora em CD – plano engavetado pela gravadora Universal, que detém os direitos sob a maior parte dos discos gravados por Clara.

Ao Estadão, a Universal diz que, por ora, não tem nenhum projeto envolvendo a obra da cantora – a multinacional acaba de lançar o Clube do Vinil, com reedições especiais de álbuns de Elis Regina, Nara Leão, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Cássia Eller, Erasmo Carlos, entre outros.

“Penso que esse desinteresse institucional em relação à Clara seja porque ela foi uma cantora que ficou conhecida por gravar sambas. Será que as empresas só enxergam o protagonismo do samba durante o carnaval?”, diz Fernandes.

Áudios raros de Clara Nunes

Tipo de material cobiçado pelos fãs, os registros ao vivo de shows realizados por Clara existem, mas jamais foram lançados comercialmente nessas quase quatro décadas de ausência da cantora.

Um deles é uma apresentação de Clara na cidade de Abidjan, na Costa do Marfim, em 1976, em uma excursão patrocinada pela Varig e pelo Banco do Brasil que ainda levou o cantor João Nogueira. Nessa gravação há, talvez, o único registro ao vivo de boa qualidade da canção Guerreira. Uma preciosidade para os fãs.

Outro, é a participação de Clara no projeto Sabor Bem Brasil, ao lado de João Bosco, Waldir Azevedo, Altamiro Carrilho, Luiz Gonzaga e o Regional do Caçulinha, produzido pelo diretor Nilton Travesso e apresentado no Brasil.

Os áudios, que estão em fitas, em estéreo, foram gravados por Genival Barros, atual diretor técnico das produções de Roberto Carlos. Ele acompanhou Clara na viagem à Abidjan na função de técnico de som. Barros, atualmente com 82 anos, lembra-se muito bem do show que Clara fez no país africano.

“Clara teve uma recepção impressionante. Ela era uma diva. Uma pessoa muito bem educada, sempre de bom humor”, conta. Barros diz que gostaria de ver esse material ser lançado para o público, após um processo de remasterização. “Por que vou ser egoísta e guardar só para mim?”, diz ele, que trabalha com Roberto desde 1969.

A reportagem do Estadão teve acesso a outro registro. A gravação ao vivo do show Brasileiro: Profissão Esperança que Clara protagonizou ao lado do ator Paulo Gracindo, dirigida por Bibi Ferreira.

Gravado no Canecão, em 1974, Clara canta, acompanhado de orquestra, entre outras faixas como Expresso 2222 e Chuva, Suor e Cerveja, a canção Travessia, de Milton Nascimento e Fernando Brant.


Embora fossem conterrâneos e tenham atuado na noite de Belo Horizonte na mesma época, antes de serem famosos, Clara jamais gravou em disco uma composição de Milton.

Memorial Clara Nunes reaberto

Se há algo em que os fãs de Clara podem comemorar nos seus 80 anos é a reabertura, no último dia 6 de agosto, do memorial que leva o nome da cantora e guarda cerca de 10 mil itens relacionados à sua carreira, entre documentos, fotos, figurinos, prêmios e lembranças de famílias.

Localizado em Caetanópolis, onde Clara nasceu, cidade localizada a 85Km de Belo Horizonte, o memorial, construído pela irmã de Clara, Maria Gonçalves, em 2012, estava fechado há quase quatro anos. O prédio precisava de reformas estruturais que só foram feitas por conta de recursos recebidos via Lei Aldir Blanc de incentivo à cultura.

O valor de R$ 25 mil reais, mais os R$ 10 mil resultantes da venda de direitos do livro à Globo, foram usados para corrigir infiltrações. Fãs de Clara também ajudaram, por meio de um financiamento coletivo. Com isso, foi possível a inauguração de uma nova exposição, batizada de Clara – Quando eu Vim de Minas.

Com curadoria de Marlon de Souza Sílvia, voluntário que trabalhava no acervo de Clara desde 2005, a exposição, que fala sobre a origem e sua relação com Minas Gerais, traz raridades da cantora, como uma gravação do show Clara Mestiça em que ela canta a canção Desenredo – nunca gravada por ela -, a fantasia que ela usou em seu último desfile na Portela e até uma mecha de cabelo de Clara, cortada por sua irmã quando Clara já estava em coma.

“Essa é uma forma de transmitir para as novas gerações a importância do trabalho da Clara. O memorial também é uma janela para se pensar o país”, diz Sílvia.

A exposição só pode ser visitada aos finais de semana, quando outro voluntário, um morador da cidade, tem disponibilidade para abrir o memorial e acompanhar os visitantes.

Outro local ligado à história de Clara em Caetanópolis, a casa em que ela nasceu e morou até os 14 anos, pode ser visitada desde 7 de agosto. A casa, que pertencia à fábrica Cedro e Cachoeira, na qual Clara e o pai trabalharam, foi restaurada pela prefeitura de Caetanópolis em um projeto que custou R$ 300 mil, recurso esse oriundo de uma emenda parlamentar.

A agente cultural Adriana Andrade diz que a administração municipal de Caetanópolis estuda a possibilidade de repassar uma subvenção mensal ao Instituto Clara Nunes, que administra o memorial, para ajudar nos custeios das despesas de seus projetos. “O memorial é muito importante para a cidade, mostra que Clara nasceu aqui”, diz.

Clara Nunes deve ganhar musical em 2023

Planejado inicialmente para chegar aos palcos no final de 2021, o musical Clara Nunes – A Tal Guerreira, com a cantora Vanessa da Mata como protagonista e direção de Jorge Farjalla, deve estrear em abril do próximo ano, em São Paulo.


Afetado pelo atraso nas produções teatrais por conta da pandemia, o musical, além disso, ainda precisa vencer um entrave burocrático. Com o projeto já aprovado na Lei Rouanet, os realizadores esperam que a Secretaria Especial da Cultura do governo federal crie uma conta no Banco do Brasil para que a captação dos recursos possa ser feita. Três empresas já se mostraram interessadas.

De acordo com o produtor Marco Griesi, a demora já dura quatro meses. “É um atraso grande. Antes tínhamos uma previsão lógica sobre o prazo, mas agora não”, diz. Ele espera que em duas semanas a questão seja resolvida para que a produção possa andar.

Segundo Farjalla, Clara Nunes – A Tal Guerreira terá mais de 20 pessoas no elenco. A direção musical será de Kassin. “Vou contar a história da Clara por meio das canções que ela interpretou. Não é algo documental. Quero ser poético ao teatralizar a vida da Clara. Uma das inspirações é o filme De-Lovely – Vida e Amores de Cole Porter em que o compositor assiste a própria vida”, diz.

O espetáculo, que começa com O Canto das Três Raças, um dos grandes sucessos da carreira de Clara, também irá abordar a viagem que ela fez para se apresentar no Japão, no ano anterior a sua morte.

Outra figura importante no espetáculo será a da atriz e diretora Bibi Ferreira (1922-2019) que dirigiu Clara nos shows Brasileiro Profissão Esperança e Clara Mestiça. “A relação dela com a Bibi era muito bonita. Bibi será praticamente a minha antagonista. Ajudará a contar a trajetória da Clara”, diz Farjalla.


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