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NO BRASIL NÃO É DIFERENTE Seis homens mais ricos concentram a mesma riqueza que a metade da população do País (Fonte: ONG Oxfam)

Preste atenção nos números que aparecem em destaque nesta reportagem. Eles incomodam, ofendem, provocam indignação. Por mais que a lista dos oito homens mais ricos do mundo seja formada por bilionários reconhecidamente decentes (todos os anos, Bill Gates doa centenas de milhões de dólares para combater a miséria e mais de uma vez Warren Buffett reclamou por pagar poucos impostos), é uma aberração, sob qualquer ponto de vista, que alguns iluminados detenham tantos recursos quanto 3,6 bilhões de pessoas, o equivalente à metade da população global. Você pode afirmar que a riqueza gera empregos, traz investimentos, alimenta a economia. Isso é verdade, mas esses argumentos não esgotam todos os lados do problema. O impressionante aumento da concentração de renda – há um ano, eram os 62 mais ricos que possuíam tanto dinheiro quanto 50% dos habitantes do planeta – é uma perversidade que, cada vez mais, joga milhões de pessoas para as sombras da sociedade.

O capitalismo chegou agora a uma encruzilhada. Se não mudar para distribuir melhor a sua riqueza e aprimorar a sua eficiência, ele próprio estará morto em alguns anos. A questão é tão grave que, pela primeira vez na história, a desigualdade social foi um dos focos do Fórum Econômico Mundial de Davos, que reúne a elite financeira global e é conhecido por um certo reacionarismo. “Não sei por que as pessoas não escutaram a mensagem de que a desigualdade é nociva e porque os economistas achavam que isso não era problema deles”, disse, no evento, a francesa Christine Lagarde, diretora do Fundo Monetário Internacional. “É necessário estudar a desigualdade e promover políticas em resposta a ela.” Coordenador da Base de Dados Mundial de Riqueza e Renda (WID.world), o cientista social Lucas Chanel traz outro raciocínio. “As discussões em Davos mostram que agora há o reconhecimento de que o sistema econômico vigente está produzindo níveis extremamente altos de desigualdade”, disse ele a ISTOÉ. “Mas não por benevolência, e sim porque finalmente perceberam que esse processo é uma ameaça à própria economia”.

Não é de hoje que pesquisadores alertam sobre como a desigualdade econômica pode levar ao colapso social e ser prejudicial para a economia. O economista britânico Tony Atkinson, que morreu no início do mês, passou a vida tentando demonstrar como o problema poderia se solucionado e até criou um índice que leva o seu nome para comprovar melhor o fenômeno. Mais recentemente, o francês Thomas Piketty ganhou fama com o livro “O Capital no Século XXI”, no qual descreve o estudo que fez ao longo de 15 anos sobre o tema . Entre outras conclusões, Piketty comprova que, no longo prazo, o capitalismo tende a criar um círculo vicioso de desigualdade. “De fato, dentro dos países ricos ela vem aumentando muito”, diz o diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Marcelo Neri. “Os Estados Unidos, por exemplo, viram sua produtividade crescer nos últimos 30 anos, mas a renda do americano médio ficou estagnada”.

MAIS EXTREMISMO

O desequilíbrio resulta em níveis de revolta que podem levar à ascensão de líderes como Donald Trump. Perspicaz, Trump identificou a indignação dos que se veriam excluídos do processo de globalização e direcionou sua campanha para essa turma. Na Europa, o que se observa é o avanço de extremistas. “A desigualdade quebra o tecido social”, resume Graciela Chichilnisky, economista da Universidade de Columbia. “Ela produz instabilidade, dissolução de blocos econômicos e reacionarismo, além de fortalecer partidos políticos de extrema direita e espalhar uma onda populista no mundo”, diz Gayle Allard, professora de Economia na IE Business School, de Madrid. O que já está ruim pode piorar. Na França, que está a apenas três meses da eleição presidencial, há o risco real de Marine Le Pen, representante da direita nacionalista, ocupar o Palácio do Eliseu. Segundo pesquisas recentes, Le Pen lidera as intenções de voto. “Esse é um dos reflexos negativos da desigualdade nas democracias modernas que proclamam, pelo menos até certo ponto, que a justiça social é um objetivo-chave”, diz Chancel, da Escola de Economia de Paris. “Quando os níveis de desigualdade se tornam muito altos, as democracias se fragilizam porque não conseguem cumprir esse objetivo central e o populismo surge como resposta à sensação de abandono das pessoas”.

A Europa tem no futuro próximo um desafio hercúleo. Até agora, o continente não encontrou uma solução capaz de resolver a crise dos imigrantes. A chegada de milhões de refugiados, que escaparam da guerra ou da miséria principalmente no Oriente Médio, tende a aumentar a já ascendente desigualdade – e, com ela, surgirá mais revolta e indignação responsáveis pelo fortalecimento de líderes extremistas. Nesse contexto, a desglobalização e o protecionismo ganham força a partir da ideia de que, se reerguermos os muros e fecharmos as fronteiras, estaremos protegidos de ameaças externas e fora do alcance das mazelas sociais. “A política de divisão e desespero está se alastrando pela Europa”, disse a primeira -ministra do Reino Unido, Theresa May, no primeiro dia do Fórum de Davos. “Quando as pessoas perdem seus empregos ou seus salários ficam estagnados, os seus sonhos parecem longe de serem atingidos e elas culpam a globalização como algo a serviço do privilégio de poucos”.

Como frear o terrível ciclo? O baixo crescimento econômico mundial só tende a piorar o problema. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, já são 201,1 milhões de desempregados no mundo – ou um Brasil inteiro. O avanço tecnológico, que rouba postos de trabalho principalmente de profissionais de baixa qualificação, é outro entrave que impõe enormes desafios ao capitalismo. Claro, ninguém está defendendo aqui o fim dos processos de inovação, mas o mundo precisa discutir como incluir pessoas que têm sua renda ameaçada pela ciência, um competidor impossível de ser batido.

fome Enquanto mais da metade da riqueza mundial de US$ 255 trilhões fica nas mãos de apenas 1% mais rico da população, imigrantes se amontoam em campos de refugiados (como este, no Iraque) em condições desumanas: o preço da concentração de renda
FOME Enquanto mais da metade da riqueza mundial de US$ 255 trilhões fica nas mãos de apenas 1% mais rico da população, imigrantes se amontoam em campos de refugiados (como este, no Iraque) em condições desumanas: o preço da concentração de renda

O capitalismo tem inúmeros defeitos, mas é o melhor que temos até agora. “Mesmo com seus problemas, ele continua sendo o sistema econômico viável, diz Raul Velloso, ex-secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento e ph.D. em economia pela Universidade de Yale. “É um sistema que não é voltado para resultados como redução de desigualdade, mas sim para objetivos de eficiência econômica, o que significa conseguir mais com os recursos escassos que temos”. Talvez o modelo seguido pelos países nórdicos seja uma experiência que possa servir de inspiração para essa nova agenda. Ao buscar o equilíbrio entre o papel do Estado, que provém os cidadãos de educação e saúde, e a livre iniciativa, que oferece igualdade de oportunidade a todos, países como Noruega e Suécia têm experiências bem-sucedidas para apresentar.

A desigualdade de renda está em alta em quase todos os países e isso é uma ameaça ao futuro do capitalismo

No Brasil, a desigualdade de renda voltou a recuar em 2015, mas por um fator negativo: todas as classes sociais ficaram pobres. Ou seja, não houve melhora na situação das pessoas e sim uma redução generalizada de todos para baixo. De acordo com o IBGE, o rendimento mensal médio, já descontada a inflação, recuou 5,4%, de R$ 1.845 para R$ 1.746. A crise econômica, que produziu 12 milhões de desempregados, e a instabilidade política foram os principais motivos para o fenômeno. “O Brasil era um caso interessante, não crescia tanto quanto os outros emergentes, mas a desigualdade caia”, diz Marcelo Neri, da Fundação Getúlio Vargas. “Pena que entrou nesse processo de deterioração”.

novos tempos O presidente da China, Xi Jinping, em seu discurso de abertura em Davos: o líder comunista defendeu a globalização e o livre comércio no encontro mundial da elite capitalista
NOVOS TEMPOS O presidente da China, Xi Jinping, em seu discurso de abertura em Davos: o líder comunista defendeu a globalização e o livre comércio no encontro mundial da elite capitalista

Além de colocar em xeque o futuro do capitalismo, o Fórum Mundial de Davos demonstrou que o mundo vive o que se pode chamar de “sinais trocados.” Em tempos de radicalismo nos Estados Unidos e na Europa, coube ao presidente da China, Xi Jinping, defender a globalização e o livre comércio, o que seria inimaginável até pouco tempo atrás. De certa forma, Davos é a comprovação definitiva de que estamos prestes a ingressar em uma era pós-capitalista. Se ela será melhor ou pior do que agora, só o futuro dirá.

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NÚMEROS DO DESEQUILÍBRIO

1%
dos mais ricos do mundo detém a mesma riqueza que todo o resto do planeta

1.810
bilionários existem no mundo (89% são homens)

182
vezes maior foi o aumento na renda do 1% mais rico em relação aos 10% mais pobres entre 1988 e 2011

1
em cada 10 pessoas no mundo sobrevive com menos de US$ 2 por dia