Levada ao pé da letra, a cena é difícil até de imaginar. Em termos metafóricos, no entanto, é simples de compreender – ainda mais quando levamos em conta a distopia surrealista em que se transformou o Brasil de 2021. A tal cena é a seguinte: um homem, sozinho, sem exércitos ou armamento pesado, consegue fazer de refém cerca de 200 milhões de pessoas.

O protagonista dessa cena assustadora é Arthur Lira, presidente da Câmara. Em certas situações, o deputado federal pelo Partido Progressista tem nas mãos mais poder que ministros do STF, senadores da República e até que o próprio presidente da República. Se a máfia italiana tem a figura do “Capo di tutti Capi”, o chefão de todos os chefes, Lira é uma espécie tupiniquim de “Centralizatore di tutto il Centro”, ou seja, o “Centralizador de todo o Centrão”.

Para entender como ele chegou a líder do Centrão, o que há de mais nefasto na política brasileira e a verdadeira razão de grande parte dos nossos problemas, é bom contextualizar de onde ele veio: dos pântanos da política alagoana, esse ambiente maravilhoso que nos deu grandes nomes como Fernando Collor e Renan Calheiros. Apesar de um currículo que conta com acusações de corrupção variadas, da Operação Taturana à Operação Lava Jato, Arthur Lira conseguiu se eleger presidente da Câmara. Ou talvez sejamos ingênuos, e tenha sido exatamente pelo tal CV que ele tenha sido escolhido para o cargo.

Sentado lá, o presidente da Câmara fez 200 milhões de reféns porque descobriu, simplesmente, que pode fazer o que quiser. O Brasil hoje é assim. Cada um faz o que quer. Não há mais o menor pudor ao cargo. No Brasil de Jair Bolsonaro, a lei é apenas um detalhe. Decoro? Não seja ridículo. Respeito às instituições? Não me faça rir.

As canetas que escrevem a história brasileira hoje têm lama em vez de nanquim.

A sociedade, representada por partidos políticos, associações de classe, pessoas físicas e jurídicas, juristas, sindicatos, e as mais diversas entidades do País protocolaram mais de 100 pedidos de impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Não é pouca coisa. Arthur Lira finge que não vê. Ou pior: vê e fala que “não há clima para impeachment”. Ora, o Brasil não pode ser governado na base do que Arthur Lira acha ou deixa de achar. Ele não é presidente da Câmara da República Federativa de Arthur Lira, ele é presidente de uma casa do Poder Legislativo do Brasil. Se fosse um único impeachment protocolado, seria compreensível que ele adiasse a decisão de levar ao plenário a discussão. Com mais de 100, ele não tem essa opção. Ou, pelo menos, não deveria poder decidir sozinho. O Brasil não pode depender da sua vontade, nem do seu bom humor.

Lira não está fazendo um favor ao Brasil. Ele tem responsabilidade institucional de pautar essa votação. É um clamor da sociedade para saber quem de seus representantes é a favor ou contra o afastamento do presidente. E pensar que afastamos Dilma Rousseff por bem menos.

Afinal, Lira não levou o voto impresso ao plenário, uma questão patética levantada pelo presidente sem prova nenhuma? Lira tem que entender que não pode colocar em votação apenas as questões em que o plenário vai votar de acordo com o que ele quer. Ele não é dono do País. Não pode colocar em votação o voto impresso apenas porque sabe que a decisão será aquela que lhe interessa. O plenário da Casa é, ou deveria ser, soberano. O presidente da Câmara é apenas um organizador da pauta, do seu cronograma e da sua viabilidade jurídica. É imprescindível que os pedidos de impeachment sejam levados para votação no plenário. O Brasil tem o direito de saber como votam seus representantes. Lira não pode ter o poder de votar apenas o que é do seu interesse pessoal. O resultado é que, ao decidir sozinho em nome do Legislativo, Lira transforma os 200 milhões de brasileiros em reféns dos seus interesses pessoais.

Foi isso, por exemplo, que ele fez com o novo Código Eleitoral. Uma proposta redigida e votada na calada da noite, tão rápido que não houve tempo sequer para criticá-la a fundo. Aposto que nenhum deputado sequer leu o projeto inteiro. O projeto votado às pressas reduziu prazo para prestações de contas em campanhas eleitorais, liberou esses partidos para gastar o fundo partidário como quiserem – até para comprar imóveis – e reduziu o alcance da Ficha Limpa. Agora é necessário perguntar: a quem interessa acabar com a Ficha Limpa? Às pessoas honestas e cumpridoras das leis? Ou há outro interesse aí?

A gota d’água foi sua frase de ontem, quando foi questionado se a declaração do presidente Bolsonaro, de que não cumpriria decisões do STF, caracterizava crime de responsabilidade. Lira saiu-se com essa: “ninguém é obrigado a cumprir decisão inconstitucional”. Traduzindo: o presidente da Câmara está dizendo que pode escolher quais decisões do STF vai cumprir, baseado no seu próprio e exótico entendimento jurídico. Pela legislação brasileira, é o STF quem diz se alguma coisa é constitucional ou não, não o presidente da Câmara. Ponto final. Ao presidente da Câmara, assim como a qualquer outro brasileiro, resta apenas a obrigação de cumprir a decisão. Nem Lira nem a assessoria jurídica da Casa, também citada por ele, tem poder para dizer se alguma decisão do Supremo é “constitucional” ou não.

Finalizo com um apelo: deputado Arthur Lira, coloque o impeachment para ser votado no plenário e deixe os representantes do povo decidirem. É sua obrigação institucional.