O oportunismo do governo federal misturado com a falta de gestão e de escrúpulos de políticos e funcionários públicos transformou a primeira etapa da vacinação nacional no Brasil em uma barafunda. Enquanto o presidente Jair Bolsonaro tenta colher os louros da imunização em massa, depois de negligenciar a compra do produto por meses e sabotar as iniciativas do governo de São Paulo, em várias cidades do País o que se vê é gente furando a fila da vacinação por motivos mesquinhos, desvios criminosos de doses do antídoto, além da falta de definição sobre grupos prioritários. Outro efeito imoral da falta de planejamento e da atitude negacionista do governo é a entrada da iniciativa privada em cena no serviço de vacinação da Covid-19, que deveria ser essencialmente público e precisaria ser centralizado.

Participando de um seminário sobre investimentos na América Latina, terça-feira 26, Bolsonaro declarou que apóia grupos empresariais a importarem diretamente a vacina. Isso tende levar a uma situação de privilégio em que se imuniza primeiro quem tem dinheiro e não a população mais vulnerável e suscetível à Covid-19. A Associação Brasileira das Clínicas de Vacina (Abcvac) prepara a importação de 5 milhões de dose da Covaxin, do laboratório indiano Bharat Biotech, que ainda não foi aprovada para uso emergencial pela Anvisa. Laboratórios como AstraZeneca e a Pfizer se recusaram a fazer vendas diretas para empresas brasileiras. Bolsonaro mudou seu discurso antivacina ao longo da semana e passou a defender os imunizantes como um recurso para sustentar a economia. “Brevemente estaremos nos primeiros lugares em vacinação para dar mais conforto à população e segurança a todos, de modo que nossa economia não deixe de funcionar”, afirmou.

Falta de gestão e de escrúpulos de políticos e funcionários públicos transforma a primeira etapa da vacinação no País em uma barafunda

FURA-FILA As gêmeas Gabrielle e Isabelle dão um jeitinho para se vacinar (Crédito:Divulgação)

Carteiradas em alta

Além de exibir um novo posicionamento, o presidente tratou também de trazer para si os louros da vacinação, iludindo a população e tentando aumentar sua influência no processo de aquisição do produto. Bolsonaro chegou a dizer nas redes sociais que havia tido participação na importação de matéria-prima da China pelo Instituto Butantan, no que foi desmentido pelo governador João Doria. Segundo o governo paulista, ele não teve qualquer influência no processo de aquisição da Coronavac. Toda a negociação com o governo chinês para trazer para o Brasil imediatamente 5,4 mil litros de insumos para o imunizante foi feita pelo Butantan, que vem negociando a importação de vacinas e componentes desde maio de 2020. “Esta negociação é continua e nunca foi interrompida, mesmo quando o governo federal através do presidente da República anunciou publicamente, em mais de uma ocasião, que não iria adquirir a vacina por causa da origem chinesa”, informou o instituto.

Até quinta-feira 28, cerca de um milhão de pessoas tinham sido vacinadas no País, um número pífio se comparado ao dos Estados Unidos, onde mais de 30 milhões de doses já foram aplicadas. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que está sendo investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por causa de sua condução desastrosa da crise de falta de oxigênio em Manaus, apareceu ao lado do personagem Zé Gotinha, para recepcionar a chegada de vacinas da Índia, mas pouco fez até agora para agilizar a compra de outras vacinas e organizar o processo de imunização. Além das 11 milhões de doses da Coronavac, o Ministério só conta, até agora, com outros dois milhões de doses do imunizante da AstraZeneca. Ainda é muito pouco para as necessidades locais. Mas a nova condição do País de “pária internacional” dificulta qualquer negócio no exterior.

DISPARATE Secretário de Saúde de Pires do RIo (GO) prioriza a “mulher da sua vida” na imunização (Crédito:Divulgação)

Em decorrência da falta de planejamento e controle do ministério, tem acontecido uma onda de carteiradas da vacina no Brasil, com autoridades locais querendo ganhar um lugar no começo da fila sem qualquer critério sanitário. Não faltam exemplos. Houve o caso de Assis Silva Filho, secretário de Saúde do município de Pires do Rio (GO), que furou a fila de vacinação e imunizou a própria esposa, alegando que se tratava da “mulher da sua vida”. Silva Filho foi afastado do cargo. Em Manaus, as gêmeas Gabrielle e Isabelle Maddy Lins, de 24 anos, ambas médicas recém-formadas e herdeiras do hospital Nilton Lins, foram autorizadas pelo prefeito da cidade, David Almeida (Avante), a tomar a Coronavac antes de todo mundo. Almeida mentiu e alegou que elas estavam na linha de frente do combate à Covid-19. O Ministério Público do Amazonas pede a prisão do prefeito por fraudes na vacinação. Em Rondônia, mais de 8,8 mil doses de Coronavac destinadas aos povos indígenas foram desviadas pelo governo local, que questiona a escolha dos grupos prioritários. Como se vê, no plano nacional ainda há mais confusão do que uma solução.