09/02/2024 - 8:00
RESUMO
• Com a colaboração de generais como Augusto Heleno e Braga Netto, Bolsonaro tramou a derrubada do regime democrático, com a prisão de ministros do STF, para a deposição de Lula e se perpetuar no Poder.
• Nem mesmo na ditadura de 1964 se viu tamanha ousadia.
• O fracassado projeto ditatorial só não deu certo porque a maioria dos militares não aderiu ao destrambelhado devaneio bolsonarista
Jair Bolsonaro articulou intensamente a tentativa de golpe de Estado em dezembro de 2022 pouco mais de um mês após a eleição de Lula para a Presidência. Ele queria prender o ministro Alexandre de Moraes, cancelar as eleições e se perpetuar no Poder, julgando que poderia contar com boa parte das Forças Armadas. Mas, como se viu no 8 de janeiro, desfecho da operação, isso não aconteceu e a maioria dos militares não aderiu aos seus ímpetos ditatoriais. Nem em 1964 se viu tanta ousadia.
Durante os preparativos para o seu fracassado projeto de ditador tupiniquim, os generais do seu entorno, sobretudo Braga Netto e Augusto Heleno, usaram militares próximos à estrutura de Estado, como ajudantes de ordens do presidente, oficiais graduados no comando das Forças Armadas para tramar ações que levariam à derrubada do regime democrático.
Detalhes de toda a operação da Polícia Federal (PF) e da Procuradoria-Geral da República (PGR) realizada na quinta-feira, 8, revelaram dados estarrecedores.
Bolsonaro aparece participando ativamente da formulação da “minuta do golpe” que quando foi encontrada com o ex-ministro Anderson Torres informou-se que ela era imprestável e seria jogada no lixo, mas que agora sabe-se que quem preparou o texto foi seu ex-assessor Filipe Martins. O então presidente, contudo, reescreveu o documento que seria usado como ponto de partida da tentativa golpista.
A PF teve acesso inclusive aos detalhes da formulação do documento.
• Filipe queria que Bolsonaro e seus militares prendessem não apenas Moraes, mas também o ministro Gilmar Mendes e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.
• Na revisão do texto, contudo, Bolsonaro o amenizou e deixou apenas Moraes como a autoridade a ser presa durante a execução do golpe.
• Para que o ministro fosse preso, o ajudante de ordens do presidente, Mauro Cid, monitorou o presidente do TSE com o apoio de agentes da Abin.
• Em trocas de mensagens do celular de Mauro Cid ainda no ano passado, a PF identificou que a agenda e os voos de Alexandre de Moraes era monitorados pelos golpistas em tempo integral para que ele pudesse ser preso quando o golpe fosse deflagrado.
• Baseado em informações fornecidas pelo ex ajudante de ordens, a investigação constatou que o ministro tinha o codinome de “Professora” na comunicação entre os golpistas.
• Em umas das trocas de mensagens entre Mauro Cid e Marcelo Câmara, o segundo na ajudância de ordens do presidente, o monitoramento fica explícito: “Tem algo?”, pergunta Cid. A resposta: “Viajou para SP hoje e retorna na manhã de segunda-feira, e viaja para SP no mesmo dia. Por enquanto, só retorna a Brasília para a posse do ladrão. Qualquer mudança que eu saiba eu lhe informo”.
Passaporte apreendido
Na decisão de Alexandre de Moraes que autorizou a operação policial de quinta-feira, o ministro ordenou que Bolsonaro entregasse o passaporte, o que foi feito ainda pela manhã. Os policiais chegaram a ir às residências do ex-presidente em busca do documento, até mesmo em sua casa de praia em Angra dos Reis.
O passaporte, contudo, estava na sede do PL e seus advogados o entregaram ao delegado-geral da PF, Andrei Passos. A apreensão do passaporte representa praticamente uma prisão, já que Bolsonaro não pode deixar o País.
A PF entende que essa é a fase preliminar do processo de prisão ao qual o ex-capitão deve ser submetido em breve. Afinal, essa medida é para prevenir eventuais tentativas de fuga. Mas nem só ele sofreu medidas restritivas na operação policial.
Em buscas no hotel onde mora o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, os policiais apreenderam uma arma de fogo sem registro e prenderam o político em flagrante. A partir de agora, os dois não podem mais se aproximar, sob risco de o ex-presidente ser efetivamente preso.
A operação da PF atingiu em cheio outros integrantes do núcleo político de Bolsonaro.
• Os então assessores palacianos Filipe Martins e Marcelo Câmara foram presos.
• Além disso, os generais Augusto Heleno e Walter Braga Netto foram alvos de busca e apreensão. Durante o governo Bolsonaro, Heleno foi ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), sob gestão da Abin, que vem sendo alvo de investigação por espionagem ilegal de milhares de políticos brasileiros.
• Os policiais fizeram operações de busca e apreensão ainda na casa do almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha, e que chegou a dizer a Bolsonaro que poderia colocar suas tropas na rua a favor do golpe.
• O general Paulo Sérgio Nogueira, ex-comandante do Exército e ministro da Defesa do ex-presidente, foi também alvo de buscas. Ele também participou de reuniões com Bolsonaro para tramar o golpe. O ex-ministro Anderson Torres, que está cumprindo prisão domiciliar com o uso de tornozeleira eletrônica, também foi alvo de buscas.
“Infelizmente tenho que dizer que a culpa pelo que está acontecendo é do General Freire Gomes (então comandante do Exército). Omissão e indecisão não cabem a um combatente. Oferece a cabeça dele aos leões. Cagão.”
General Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa de Bolsonaro
Outro aspecto estarrecedor é a gravação de uma reunião entre generais que trabalhavam diretamente sob ordens de Bolsonaro. O general Augusto Heleno defendeu que o governo “virasse a mesa” antes das eleições de outubro 2022 para garantir um segundo mandato de Jair Bolsonaro “a qualquer custo”.
A reunião foi no Palácio do Planalto em 5 de julho de 2022. A gravação do encontro foi obtida pela PF no âmbito da Operação Tempus Veritatus. “Não vai ter revisão do VAR. Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa é antes das eleições”, disse Heleno, de acordo com a PF. “Nós vamos ter que agir. Agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas”, diz Heleno na gravação.
“Não vai ter VAR, se tiver que virar a mesa é antes das eleições. Temos que agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas.”
General Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI)
Em outro áudio ao qual os policiais tiveram acesso, o então candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro em 2022, o general Walter Braga Netto pediu a “cabeça” e chamou de “cagão” o comandante do Exército, general Freire Gomes, por ele ter se recusado a aderir ao movimento golpista.
A fala consta em conversa obtida pela PF em uma conversa de Braga Netto com o capitão reformado do Exército Ailton Moreira Barros. Braga Netto encaminhou a Ailton Barros uma mensagem que ele teria recebido de um integrante das Forças Especiais do Exército na qual Freire Gomes é acusado de “omissão e indecisão” por não agir.
Ailton Gomes sugeriu para que o comandante fosse pressionado a aderir ao golpe e Braga Netto concorda, afirmando que o general teria que ter a cabeça dada aos leões e ele era “cagão”.
As investigações também descobriram que militares da ativa pressionaram colegas contrários ao golpe para tentar fazê-los aderir ao movimento. Mauro Cid até recebeu um pedido de R$ 100 mil para ajudar na organização de atos golpistas, segundo os relatórios da investigação.
Para a PF, a reunião indica de forma conclusiva a dinâmica da tentativa de um golpe de estado. A PF, com o endosso da PGR, diz que todos os envolvidos na tentativa de golpe atuavam para “validar e amplificar a massiva desinformação e as narrativas fraudulentas sobre as eleições e a Justiça eleitoral”.
A investigação, neste ponto, tenta elucidar a participação dessas pessoas nos atos do dia 8 de janeiro, quando milhares de manifestantes invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes. Para os policiais, fica claro que o grupo se dividiu em dois ramos de atuação:
• um deles estava voltado a construir e propagar informações falsas sobre uma suposta fraude nas urnas, apontando a “falaciosa vulnerabilidade do sistema eletrônico de votação”. Essas afirmações, feitas sem provas, continuaram a ser propagadas mesmo após o resultado da eleição.
• O segundo eixo, de acordo com as investigações, praticava atos para subsidiar a abolição do Estado Democrático de Direito, com a intenção clara de consumar o golpe. Essa etapa, de acordo com as investigações, tinha o apoio de militares ligados a forças especiais e táticas, como os “Kids Pretos”, com base num quartel de Goiás.
Em nota, o comandante do Exército, general Tomás Paiva, avisou que os quatro militares da ativa que são alvos da operação serão afastados de suas funções. A avaliação da instituição é de que as medidas judiciais contra os oficiais precisam ser respeitadas.
Ao comentar a operação policial que o deixa ainda mais próximo da cadeia, Bolsonaro preferiu o deboche. Enquanto esperava por mais informações sobre a ação da PF fez declarações com gracejos na porta da casa de Angra dos Reis. “Saí do governo há mais de um ano e sigo sofrendo uma perseguição implacável. Ontem, eu havia combinado com o pessoal que ia 4h30 pescar hoje mais longe, mas eu estava cansado e cancelei. Fique em casa aqui. Mas ainda bem, né? Senão iam falar de novo que eu tinha fugido.”
“Colocaremos as tropas na rua para apoiar o golpe.”
General Estevam Theophilo, então comandante de Operações Terrestres (COTER) do Exército
Reação
A maioria dos investigados não se pronunciou sobre as operações de busca e apreensão, como foram os casos de Braga Netto, Anderson Torres e Augusto Heleno.
Em nota o Centro de Comunicação Social do Exército diz que o órgão acompanha a operação e está “prestando todas as informações necessárias às investigações”.
Ex-comandante da Marinha no governo Bolsonaro e um dos alvos da operação, o Almirante Almir Garnier Santos se manifestou também em nota, informando que teve o seu aparelho celular apreendido.
Entre outros aliados do ex-presidente, houve protestos. “O país vive uma situação de não normalidade. Inquéritos eternos buscam ‘pelo em ovo’, atacando, sob a justificativa de uma pretensa tentativa de golpe de estado, a honra e a integridade de chefes militares que dedicaram toda uma vida ao Brasil”, disse o general e senador Hamilton Mourão.
Entre os filhos do ex-presidente apenas o deputado federal Eduardo fez comentários: “A política no Brasil, hoje é feita pelo STF”.
Já o presidente Lula disse que Bolsonaro foi “peça fundamental” para os ataques de 8 de janeiro.