Nos próximos dias, a Olimpíada do Rio provocará algum impacto na vida de 5 bilhões de pessoas. Quando a pira olímpica for acesa, no estádio do Maracanã, na noite da sexta-feira 5, uma criança pobre da República Democrática do Congo sentirá o desejo irrefreável de ser um atleta de verdade e um empresário na Alemanha dirá para si mesmo que deveria ter vindo para o Brasil. Em qualquer lugar, alguém irá à TV para ver as finais do atletismo ou recorrerá à internet para checar o quadro de medalhas. A Olimpíada é, de longe, o espetáculo mais global criado pelo homem, acima até da Copa do Mundo de futebol. Por que nós gostamos tanto do maior evento esportivo do planeta? Ver os atletas e o desfile imodesto da perfeição certamente é o que motiva um contingente enorme de fãs, mas há muito mais por trás da pura e simples torcida. Por que nos emocionamos quando uma maratonista, mesmo cambaleante e em último lugar, luta até o final apenas para cruzar a linha de chegada? Por que sentimos um aperto no coração quando um nadador de um país miserável mal consegue atravessar os 50 metros da piscina? Para o jornalista britânico John Goodbody, autor de “A História das Olimpíadas”, as pessoas amam as competições não só pelo esporte em si, mas também – e, talvez, acima de tudo – pelos valores éticos que os Jogos consagraram. Em um mundo em crise como o nosso, seja ela política (no Brasil), econômica (no Brasil e em diversos outros países) ou moral (a ameaça crescente do terror em muitos lugares), nunca uma Olimpíada veio em tão boa hora. Só ela e os ideais que a representam podem ser o contraponto para uma sociedade cada vez mais convulsionada.

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Trégua nas guerras

O espírito olímpico persevera desde 776 a.C., quando se registra o começo das competições na Grécia Antiga. Naquele passado distante, as guerras entre povos eram suspensas para dar lugar ao esporte. A Olimpíada não significava o fim das inimizades, mas um acordo de paz temporário. A trégua olímpica se tornou tradição e até hoje é lembrada. Na quarta-feira 27, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, pediu o fim das hostilidades entre as nações para um período que vai dos sete dias anteriores aos Jogos Olímpicos, em 29 de julho, até sete dias após a Paralimpíada, que termina em 18 de setembro. “Uma pausa nos combates seria uma manifestação dos valores que os Jogos procuram promover: respeito, amizade, solidariedade e igualdade”, disse Ban Ki-moon, que fez um apelo às partes envolvidas em conflito para que deponham as armas e observem o cessar-fogo.

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Poucas vezes uma Olimpíada foi realizada em meio a tantas trevas. Em 2016, o terrorismo promovido pelo Estado Islâmico matou milhares de pessoas, o radicalismo de líderes estúpidos como Donald Trump acentuou preconceitos, o aumento do fluxo migratório tornou o Velho Continente menos tolerante. No Brasil, a mesma escuridão alastrou-se nos últimos dois anos. A corrupção sem fim levou ao declínio econômico que destruiu os sonhos de milhões de brasileiros, a violência urbana produziu tragédias nas grandes cidades e muitas outras desgraças contemporâneas tiraram o ânimo de um País otimista por tradição. Para muita gente, tudo isso seria motivo para que não houvesse Olimpíada. Não deveria ser exatamente o oposto? A Rio-2016 pode funcionar como um antídoto contra a melancolia – e não o contrário. Ninguém espera, evidentemente, que a Olimpíada seja capaz de resolver os problemas do mundo ou mudar a natureza das pessoas. Apenas que, de quatro em quatro anos, ela demonstre que a paz é o caminho a ser perseguido.

Jogos sem ideologia

Não poderia haver momento mais oportuno para reacender o olimpismo, conceito criado pelo barão francês Pierre de Coubertin (1863-1937) em 1896, quando recriou os Jogos concebidos na Antiguidade. Há mais de um século, Coubertin trabalhou para que ideologias não prejudicassem a realização da competição. A Europa fervia com divergências que levariam, anos depois, à Primeira Guerra Mundial. Para garantir que não houvesse ligação entre esporte e nacionalismo, o barão francês decidiu que os Jogos deveriam pertencer a uma cidade, e não a um país-sede. É assim até hoje, embora o caráter idealista do Comitê Olímpico Internacional tenha se perdido nestes anos todos. “O maior legado olímpico é a possibilidade de encontro entre pessoas com visões de mundo diferentes, mas sem ódio entre elas”, diz João Eduardo Coin de Carvalho, professor de psicologia social da Universidade Paulista. “É muito bonito ver todas aquelas nações juntas.” Seria ingênuo dizer que os Jogos só se prestaram para objetivos nobres. “Eles já funcionaram como instrumento de poder”, diz Paulo Lobato, doutor em Ciências do Esporte pela Universidade Trás-os-Montes, de Portugal. “Hitler, por exemplo, aproveitou a Olimpíada de Berlim, em 1936, para fazer propaganda nazista.” A culpa, claro, não foi da Olimpíada, mas de um maluco que subverteu todos os valores que ela inspira.

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Também não é culpa dos Jogos do Rio o fato de o País passar por um período tão complexo. Muita gente faz essa confusão. O Brasil tem enfrentado momentos difíceis, mas que provavelmente seriam piores sem o alento da Olimpíada. É óbvio que os erros cometidos pela organização, como entregar a Vila dos Atletas inacabada, devem ser condenados, como é verdade que promessas são feitas para ser cumpridas (é mesmo uma tristeza o Rio não ter despoluído a Baía da Guanabara, como estava no programa de ações apresentado à sociedade). Tudo isso está errado, tudo isso é uma pena, mas não reconhecer que o Rio se tornará uma cidade melhor depois dos Jogos soa como injustiça.

Renda per capita aumentou

Basta dar uma espiada em fatos concretos para perceber que a cidade avançou em muitos aspectos. Um dado revelador foi divulgado na semana passada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Segundo o estudo, a Olimpíada trouxe um significativo legado social para os cariocas. Desde 2009, quando o Rio foi escolhido para sediar o evento, a renda per capita no município cresceu 30,3%, mais do que qualquer outra cidade brasileira. Enquanto no restante do País a desigualdade aumentou, no Rio ela sofreu uma ligeira queda. “A economia carioca, do ponto de vista das pessoas, demorou a decolar após o anúncio da sede olímpica. Uma vez embalado, o crescimento não perdeu força”, diz o economista Marcelo Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais da FGV.

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A escolha do Rio como sede também tirou do papel obras que há anos vinham sendo postergadas, como os corredores expressos de ônibus e a linha 4 do metrô, que liga a Barra da Tijuca, na Zona Oeste, à Zona Sul. Em 2009, apenas 18% dos cariocas utilizavam transporte de alta capacidade. A expectativa é que, no ano que vem, o percentual suba para 63%. “Isso é quebrar paradigmas, já que todas as nossas cidades foram desenhadas para carros”, diz Joaquim Monteiro, presidente da Empresa Olímpica Municipal (EOM). Outra mudança radical desencadeada pelos Jogos é a Zona Portuária, uma região degradada da cidade que foi recuperada. “Se não fosse a Olimpíada, levaríamos décadas para fazer tudo isso”, diz Monteiro. “Ou, talvez, nunca fizéssemos.” Quando todas as delegações forem embora, os BRTs (ônibus expressos articulados) ficarão para a cidade e o metrô será do cidadão carioca. Outro dado interessante, mas também pouco explorado, diz respeito ao custo total da Rio-2016. Ele ficará em torno de R$ 39,1 bilhões, menos do que os R$ 45 bilhões gastos pelos ingleses para promover a Londres-2012 – e isso em uma cidade que não precisa de tantas transformações quanto o Rio. Nesse aspecto, os cariocas foram mais responsáveis que os britânicos.

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Na semana passada, as críticas à Rio-2016 ganharam dimensão internacional. Jornais ingleses, espanhóis e americanos disseram que a Olimpíada no Brasil nasce provavelmente como a pior da história. Por mais que a Vila dos Atletas tenha apresentado falhas imperdoáveis, as críticas carregam certa dose de preconceito. Uma holandesa reclamou que a pia do banheiro de seu apartamento não tinha água quente, um luxo ao qual poucos cariocas, acostumados a temperaturas elevadas, têm acesso. Os críticos não lembram que Olimpíadas passadas também enfrentaram uma série de problemas. Em Atlanta-1996, falhas no sistema de transporte fizeram com que atletas se atrasassem no trânsito e até perdessem competições. Em Pequim-2008, níveis altos de poluição levaram alguns turistas para os hospitais. Em Londres-2012, algumas camas da Vila dos Atletas tinham só 1,80 m de comprimento para receber inclusive jogadores de basquete e vôlei, a maioria com mais de 2 metros de altura. Não se trata de justificar os erros cometidos pela organização da Rio-2016 – absurdos, repita-se –, mas o que não se deve tolerar é a disseminação de velhos estereótipos que não levam a lugar algum. No Brasil, nenhuma disputa foi aberta e já há quem crave que tudo será um desastre.

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Torcida faz diferença

Os atletas apostam que tudo será diferente quando a primeira disputa começar. “Vai ser uma Olimpíada espetacular”, diz o jogador de vôlei Wallace, uma das estrelas da seleção. “Não existe torcida como a nossa. Já joguei em todos os cantos do mundo e nunca vi nada parecido com o que os brasileiros fazem numa arquibancada. Imagine durante a Olimpíada.” Se, em Londres-2102, foi inesquecível observar os ingleses vibrando com as vitórias de seu time, é mesmo de se esperar uma festa ainda mais intensa dos torcedores brasileiros. A força das arquibancadas é uma das esperanças do Comitê Olímpico do Brasil para que o País cumpra a meta de ficar entre os dez primeiros colocados no quadro de medalhas, algo jamais alcançado.

Não será uma tarefa fácil. Para que isso aconteça, o País precisa conquistar entre 22 e 28 pódios. Depois de muito dinheiro investido em bolsas para atletas, infraestrutura e contratação de técnicos estrangeiros, o Brasil conseguiu formar competidores de alto nível em diversas modalidades, saindo do tripé vôlei-judô-vela, que tradicionalmente conquista o maior volume de medalhas. Os brasileiros têm ótimas chances em esportes que jamais forneceram pódios, como canoagem, com o baiano Isaquias Queiroz, e luta olímpica, com a paulista Aline Silva. “Temos, sem dúvida, o melhor time da história”, diz Marcus Vinícius Freire, superintendente executivo de esportes do Comitê Olímpico Brasileiro. A delegação nacional é formada por 465 atletas, além de centenas de treinadores, médicos, preparadores físicos e psicólogos. Os homens são maioria (256 contra 209 mulheres), mas, pela primeira vez, elas têm mais chances de medalhas do que eles. Se o Brasil for mesmo top 10, isso será resultado da força das mulheres. Na vela, nossa maior chance de ouro está com a dupla Martine Grael e Kahena Kunze, na classe 49er FX. No judô, as favoritas são Sarah Menezes e Mayra Aguiar. Na natação, com a ausência de Cesar Cielo, as esperanças estão depositadas em Ana Marcela Cunha e Poliana Okimoto, atletas da maratona aquática.

A Olimpíada no Rio pode significar a redenção da autoestima nacional. O golpe desferido pela Alemanha na semifinal da Copa do Mundo de 2014 não só escancarou as mazelas do futebol brasileiro como feriu de morte o orgulho do País. Os 7 a 1 foram horríveis e dolorosos, mas agora temos uma chance de ouro para superar essa mácula (embora dificilmente um dia ela seja esquecida). Fora do campo esportivo, a vida dos brasileiros só piorou depois da Copa. Os 7 a 1, de certa forma, viraram a metáfora perfeita para o rosário de problemas que enfrentamos. Fomos goleados pela corrupção, pela incompetência dos políticos, pelo desemprego, pela violência nas cidades, pela epidemia do zika. Muita coisa parece ter naufragado no Brasil – e até as trapalhadas cometidas na Vila dos Atletas colocaram nosso ânimo para baixo antes mesmo de a Olimpíada começar. Agora que o jogo é para valer, vale a pena alimentar alguma esperança. O espírito olímpico avisa que é preciso dar uma trégua em tudo o que está errado.

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