O Brasil tem Lula na Presidência da República, Flávio Dino no Ministério da Justiça e Silvio de Almeida na pasta dos Direitos Humanos. Essas três pessoas são símbolos da democracia e do Estado de Direito. É injustificável, portanto, que o operário aposentado José Vicente Correa, 86 anos de idade e dono de um zumbido diuturno no ouvido esquerdo devido à tortura que sofreu na ditadura militar, não receba imediatamente a indenização que há décadas implora.

Em 29 de janeiro de 1970 o Brasil vivia o auge da ditadura militar com o general Emílio Garrastazu Médici no comando do País. Os porões da repressão, dos quais os governantes tinham pleno conhecimento, funcionavam feito usinas de triturar gente: oponentes do regime eram sequestrados, torturados e assassinados pelos agentes a serviço do governo federal. Corpos de prisioneiros desapareciam, muitos deles enterrados clandestinamente.

Pois bem, na data acima mencionada teve início o calvário de José, conforme reportagem do jornal Folha de S. Paulo. Aqui vai a história resumida, com o objetivo de alicerçar o mote original e principal desse artigo: a necessidade de revisão da Lei de Anistia.

Em plena madrugada, policiais não identificados invadiram a casa de dois cômodos em que José morava no bairro paulistano de Pirituba. Nela, viviam, além do então operário, sua esposa, senhora Lourdes, dois filhos, sua mãe e um amigo – que ele conhecera em reuniões sindicais.

José, Lourdes e o amigo foram presos, algemados e transportados à sede da Operação Bandeirantes, centro de torturas da ditadura. O operário padeceu, barbaramente massacrado: socos, pontapés e choque elétrico no interior do ouvido – explicado, está, o enlouquecedor zumbido que o acompanha a vida inteira (à época ele tinha 33 anos).

Da sede da Operação Bandeirantes, ele foi transferido para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Segundo suas próprias palavras, vivia mais desmaiado que acordado de tanto apanhar.

José acabou sendo falsamente acusado de integrar a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e viu-se forçado a assinar documentos nos quais constavam “ações terroristas” que ele jamais praticou – e, ainda que as tivesse praticado, jamais se justificaria a tortura. José nunca integrou qualquer organização dentre todas que se opuseram à ditadura. Era completamente inocente das acusações que lhe faziam, mas cada vez que dizia que não tinha nada a ver, era torturado.

Em outubro de 1970, a II Circunscrição Judiciária Militar reconheceu sua inocência.

José e sua história ensejam a reabertura de um debate e a correção de um anacronismo jurídico que há no Brasil. É necessária e urgente a revisão da Lei da Anistia, de 1979, que anistiou guerrilheiros contrários aos ombros estrelados que usurparam o poder, mas também anistiou torturadores — tortura é crime contra a humanidade, imprescritível e não passível de anistia, graça, perdão ou indulto.

Os integrantes dos poderes republicanos têm o dever ético e civilizatório de cuidar disso já, e punir os que operaram as máquinas de choque como meio de tortura (“pimentinhas”), assim como todos aqueles que hierarquicamente estavam nos andares de cima do criminoso aparelho repressivo. E têm, igualmente, o mesmo dever de indenizar imediatamente o operário aposentado José.