Ao longo de 127 anos de República, as nossas oito constituições receberam alguns grandes golpes que implicaram rupturas institucionais. E também sofreram e continuam sofrendo um alto número de aviltamentos que, embora não se traduzam em traumas às instituições, nem por isso são menos graves, uma vez que ferem o Estado de Direito – ou seja, a história mostra o perigo que se corre toda vez que a Carta é atropelada e as más consequências desse atropelo para o País. Para se ter ideia, sete em cada dez leis avaliadas no ano passado pelo Supremo Tribunal Federal, em Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIN), caíram por terra por desrespeitarem a Constituição, trocando-a por normas menores. “Talvez até haja alguma ignorância por parte do legislador em relação a alguns mandamentos da Constituição”, diz o jurista Antonio Cláudio Mariz de Oliveira. “Mas de modo geral ela não é difícil de ser interpretada”. O mais recente episódio nesse sentido, por incrível que pareça, foi protagonizado pelo próprio presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, a quem compete por ofício zelar pela constitucionalidade. Ao final do julgamento do impeachment de Dilma Rousseff, no Senado, ele avalizou a armação política que não a inabilitou para a vida pública. Com isso, o ministro fez com que uma lei (a de número 1079) se sobrepujasse à Constituição. “O ato de Lewandowski é uma inconstitucionalidade”, diz Mariz de Oliveira.

O presidente do STF atravessou a Praça dos Três Poderes e assumiu o Senado para apitar um eventual pênalti inconstitucional. Pênalti houve, mas Lewandowski não apitou, na verdade ele fez a falta dentro da grande área. E somou assim mais um absurdo aos tantos que se assiste. No campo dos golpinhos que não implodem instituições, o STF teve de derrubar uma lei (acredite quem quiser) que dava pensão especial, com salário igual a de desembargador na ativa, a todas a vítimas ou familiares de vítimas de crimes hediondos, e isso retroativo aos tempos da inauguração de Brasília, em 1960. Essa esdrúxula lei caiu agora. No ano passado, ficaram famosos os casos de proibição das biografias não autorizadas. Tratava-se de vilipêndio constitucional porque juízes de primeira e segunda instâncias as estavam proibindo com base nos artigos 20 e 21 do código civil. Ora, o código é inferior à Constituição, e o texto constitucional é inflexível na proibição de toda forma de censura, inclusive a prévia. O STF derrubou as proibições, mas o estrago material a muitos biógrafos e o estrago intelectual a eventuais leitores já estavam consumado. Cicatrizes sociais ficaram, essas sim, quando o ex-presidente Fernando Collor confiscou em 1990 os recursos das contas correntes e investimentos que ultrapassassem 50 mil cruzados novos. Foram feridos artigos básicos da Carta como os de número 5 e 62, garantias enfim da inviolabilidade de contas bancárias sem ordem judicial. Criou o caos social e econômico, a anomia enfim. Pessoas físicas e jurídicas quebraram, viu-se suicídios pelo País. “Esse é o mais completo exemplo de aviltamento da Constituição”, diz Mariz de Oliveira.

Há, no entanto, casos em que se mandou a Constituição às favas e o preço pago é incalculável devido a ruptura institucional. Trata-se de golpes de estado, e a posição do STF tem sido pendular: ora reage, por intermédio de um ou dois ministros, ora cede aos donos do poder. Em 1892, por exemplo, Floriano Peixoto, contrariado com os habeas corpus impetratos no STF a favor dos revoltosos da Armada, foi inescrupuloso: “Se o STF der habeas corpus, quero ver quem dará habeas corpus ao próprio STF”. Ou seja: ele mandaria prender os ministros. O ditador Floriano ganhou a queda de braço por 10 votos a um. O tempo voa mas a coragem, muitas vezes, se queda. Em 1937 Getúlio Vargas decreta o totalitário Estado Novo, rasga a Constituição de 1934, cria o Tribunal de Segurança Nacional, forma uma polícia especial com carta branca para tortura e matar. Se o STF tivesse ficado quieto, já estaria, no caso, mais do que bom. Mas não. Recusou habeas corpus a favor da presa judia Olga Benário, esposa do líder comuniste Luiz Carlos Prestes, e assim ela foi deportada e morreu nos campos de extermínio dos nazismo. Já no golpe militar de 1964, com o qual a sociedade pagou o preço de 21 anos de trevas e arbítrio, um ou outro ministro do STF reagiu. “A posição do STF não tem sido nem de protagonismo nem de grandes resistências quando a Carta é desrespeitada ou aniquilada”, diz o professor-associado de direito penal da USP Pierpaolo Bottini. “Há episódios esporádicos de ministros reagindo”. Primeiro presidente do regime militar, o marechal Humberto de Alencar Castello Branco pediu ao presidente da Corte, Álvaro da Costa, que se “alinhasse à revolução”. O marechal ouviu um sonoro “não”. Em 1968, com a instauração do AI-5, veio a censura prévia. Contra ela se insurgiu apenas o ministro do STF Adaucto Lucio Cardoso, já seus pares se aquietaram. Retirou a toga, lançou-a sobre a mesa e declarou: “Nunca mais piso no Supremo Tribunal Federal”. Não mais pisou. (Colaborou Elaine Ortiz e Mel Bleil Gallo)

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