06/04/2018 - 7:10
Dia 9 de agosto de 1971, 8h52, Salão Oval da Casa Branca, Washington. O chefe de gabinete H. R. Haldeman orienta o presidente norte-americano Richard Nixon a respeito de uma série de temas. Até que a conversa chega a um “problema a ser resolvido” sobre a inauguração, dali a algumas semanas, do Kennedy Center, complexo de salas de espetáculos batizado em homenagem ao ex-presidente John Kennedy. “O problema é que haverá essa peça, Mass, escrita por Leonard Bernstein”, introduz Haldeman, ao que Nixon responde com um sonoro palavrão.
“Exato, very, very bad. Pode ser muito ruim. É arte depressiva.
Definitivamente. Com tons políticos, ao que parece. Deprimente. É aquele tipo de obra sobre tudo que vai mal. Um presidente não pode ir…”
O diálogo, captado em meio às centenas de horas de gravações hoje conhecidas como Nixon Tapes, dá uma pista da comoção a respeito da estreia de Mass, Missa, obra do compositor norte-americano Leonard Bernstein (1918-1990), que, no ano de seu centenário, tem conquistado espaço renovado, com uma nova gravação (pelas mãos do maestro Yannick Nézet-Séguin) e apresentações em todo o mundo. Esta semana, por exemplo, ela é encenada em Londres, com Marin Alsop e o barítono brasileiro Paulo Szot à frente da produção. E, nesta sexta, 6, ganha sua estreia brasileira, no Teatro Municipal de São Paulo.
“Bernstein é ao meu ver o mais completo músico norte-americano do século 20”, diz o maestro Roberto Minczuk, que comanda a apresentação e acompanhou ensaios e concertos do artista durante o período em que estudou em Nova York. “Pianista, maestro, e um compositor que, em obras como a Missa, constrói uma narrativa em que nada é artificial, tudo faz sentido com o texto, além de flertar com uma variedade enorme de gêneros e estilos que era a cara de Nova York, cidade que naquele momento era o grande centro de modernidade de todo o mundo. Bernstein foi um ícone, símbolo dessa riqueza, que ele soube retratar de maneira genial”, completa.
O que então teria preocupado tanto o assessor de Nixon? Difícil saber por onde começar. Ao receber pessoalmente de Jacqueline Kennedy a encomenda de uma obra para inaugurar o centro cultural em homenagem a seu marido, Bernstein optou pela temática religiosa. Mas o fez de maneira bastante pessoal. Sua Missa não é uma celebração em si. Ela até começa dessa forma, mas aos poucos jovens artistas de rua, católicos fervorosos e um celebrante em crise com sua própria fé levam a narrativa em direção ao questionamento do fundamentalismo religioso, sem deixar de lado a exaltação da cultura hippie e uma crítica à guerra – isso tudo em meio à Guerra do Vietnã. “O mundo está à beira do colapso, pior do que nunca. Como alguém de fato pode se sentir parte de algo real? Eu não posso”, escreveu Bernstein na época.
A utilização da religião como ponto de partida para a discussão de questões do presente não era exatamente novidade dentro da carreira de Bernstein: na sua Sinfonia n.º 3 – Kaddish, escrita quase dez anos antes, o compositor dava voz a um narrador que discute raivosamente com Deus, a quem acusa pelos males e injustiças do mundo. Na Missa, no entanto, além do conteúdo potencialmente explosivo, havia também a forma: a escrita de Bernstein pede não apenas por uma grande orquestra, mas também por uma banda de rock, um grupo de blues, um conjunto que ele chamou de “Street Chorus”, além de outros três corais. A música torna-se, assim, uma mistura, que inclui ainda o folk (até Paul Simon participou com uma canção que ofereceu a Bernstein), o gospel, a Broadway, o jazz, a tradição romântica e os elementos da vanguarda dos anos 1960. Ao todo, são mais de 300 pessoas sobre o palco (no Teatro Municipal, atuam a Sinfônica Municipal, o Coral Lírico, o Coral Paulistano, o Coral Infantojuvenil, uma série de artistas convidados e o barítono Michel de Souza, que interpretou Papageno na Flauta Mágica do ano passado no teatro, no papel central do Celebrante).
“Há algo de muito moderno nessa mistura proposta por Bernstein naquele instante”, diz Minczuk, que coloca o questionamento do compositor a respeito da relação com Deus em perspectiva. “Há uma atualidade naquilo que a obra discute. Ela nos mostra, entre outras coisas, como a fé pode ser usada de maneiras equivocadas. Há uma pergunta que permeia a obra: qual o propósito da vida? Qual o sentido de tudo? Moisés, Elias, Jó, todos eles se questionaram a respeito disso, a fé verdadeira deles nascia de um conflito inicial. Na Missa de Beethoven também dá para perceber, em momentos como o Gloria, que ele está dialogando de forma agressiva com a figura divina. É o mesmo que acontece de certa forma com Bernstein, que nos mostra também que a arte é um veículo importante para se tratar dessas questões profundas para o ser humano.”
MISSA
Teatro Municipal. Pça. Ramos de Azevedo, s/nº; 3397-0327.
6ª (6), 20h; sáb. (7) e dom. (8), 16h30. R$ 30 a R$ 80
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.