Quem já visitou a Itália certamente ouviu uma das frases mais famosas por lá: “Chiuso per reparo”, ou seja, fechado para restauração. A Itália é considerada o berço do Renascimento Cultural, pois muitas de suas cidades, como Gênova, Florença e Veneza, foram responsáveis pelo grande desenvolvimento intelectual e artístico que tivemos nos séculos XV e XVI. Esse despertar não ficou restrito à península na qual o país se encontra, mas se espalhou por vários países da Europa e influenciou absolutamente tudo o que hoje conhecemos como arte.

Esta semana, amantes do mundo das artes comemoraram o anúncio da primeira grande restauração da escultura que Michelangelo fez para o seu próprio túmulo. Finalmente, a escultura Bandini Pietà de Michelangelo, com 470 anos será restaurada. Trata-se de uma das grandes esculturas inacabadas do mestre da Renascença e chama atenção por suas caraterísticas únicas.

Pode parecer meio estranho criar uma escultura para ornamentar o seu próprio jazigo, mas era muito comum antigamente termos artistas produzindo este tipo de obra. Esculturas como essa funcionavam como testamentos sem palavras, registrando de forma extremamente pessoal a imensidão da arte e da fé. As obras também tinham um teor autoral grande, uma vez que não eram fruto de encomendas nem de papas ou de messias da época, como a Família Medici.

Quem estuda arte sabe que acompanhar reparos é fascinante, pois muitas vezes somos surpreendidos com pinturas escondidas, testes antes de versões finais ou com descobertas inimagináveis que surgem no meio do trabalho. Dessa vez não foi diferente. Já na limpeza preliminar, os especialistas identificaram resquícios do gesso que gerou o molde da obra, assim como algumas ferramentas que devem ter sido utilizadas por Michelangelo há mais de quatro séculos.

A Bandini Pietà é a última das grandes estátuas produzidas por Michelangelo e terceira e última Pietà esculpida por ele. A escultura foi produzida a partir de um único bloco de mármore branco, e era do tipo de Carrara, o preferido pelo artista italiano. Mas, na parte de trás, a estátua estava com uma cor cinza bem escura e sem nenhum brilho. Por 220 anos, ela ficou do altar principal da Igreja Santa Maria del Fiore (Duomo de Florença), acumulando nas costas resquícios das velas que caíam em gotas, marcando o mármore para sempre. Essa alteração ajuda a dimensionar o quão complexo é um trabalho de restauração. No caso específico, a limpeza inicial começou em novembro do ano passado e foi interrompida por tempo indeterminado por causa do Covid-19. Agora, a estátua começa uma jornada de preparação para poder ser vista novamente pelo público.

A mais famosa estátua de Michelangelo fica na Basílica de São Pedro, no Vaticano. A “Pietà”, que em italiano significa piedade, mostra Jesus morto nos braços de sua mãe. Uma fita que atravessa o peito da Virgem Maria mostra a única assinatura que o artista fez em vida em seus trabalhos: “MICHAEL ANGELUS. BONAROTUS. FLORENT. FACIEBA”, ou seja, “Miguel Angelo Buonarotus de Florença que fez”. Ele talhou seu nome no mármore para provar que era capaz de fazer a estátua. Tinha apenas 23 anos e muitos acreditavam que ele não seria capaz de fazer algo tão grandioso. Corajoso e arrojado desde jovem, Michelangelo colocou Jesus menor que a Virgem para mostrar que, mesmo com a sua importância, ele era seu filho. A composição forma uma pirâmide perfeita com a Virgem Maria muito jovem, mas com uma dramática expressão de dor em seu rosto.

A estátua do túmulo é tão interessante quanto a Pietà de São Pedro porque não representa apenas a Virgem Maria embalando o corpo sem vida de seu filho Jesus, mas a mostra apoiada em sua dor por Maria Madalena e pelo idoso Nicodemos. Interessante ver que o mestre deixou seu rosto visível para todos justamente na estátua de seu leito de morte, uma vez que estampa seu autorretrato na velhice no rosto de Nicodemos.

Para ser criada, a escultura consumiu oito anos de trabalho (de 1547 a 1555), mas acabou sendo abandonada por seu criador. Michelangelo encontrou dificuldade na composição porque o mármore tinha imperfeições. Talvez por isso, a estátua não tem a perna esquerda de Cristo. Mas, as curiosidades em torno dessa obra vão além. Giorgio Vasari, o primeiro historiador de arte do mundo, escreveu em seu livro que Michelangelo tentou destruir a escultura com o seu poderoso martelo. Quem olha de perto realmente vê sinais desse momento de raiva ao notar que o braço esquerdo de Cristo está quebrado, assim como outras partes da estátua. Para nossa sorte, um servo desconhecido consertou o mármore e o mundo hoje pode ver a maravilhosa escultura.

A Bandini Pietà fica no Museo dell’Opera del Duomo, que recebeu financiamento da Fundação Amigos de Florença para o processo de restauração. Foi construída uma plataforma em torno da obra para ficar durante todo o período de restauração e, a partir de 28 de setembro, os visitantes terão permissão para entrar no local, em visitas guiadas e em apenas alguns momentos do dia. Esses pequenos grupos, com hora marcada, poderão ver as atividades da equipe de restauradores, que tem o enorme desafio de limpar a obra sem alterar suas características originais.

Com esse tipo de trabalho, pode ser que apareçam novas histórias sobre essa maravilhosa escultura, despertando uma nova narrativa sobre seu processo de desenvolvimento. No mundo da arte é sempre assim: um novo olhar pode mudar por completo a forma como apreciamos uma obra prima.

Em tempo, para não deixar ninguém curioso sobre o tema: Michelangelo Buonarrroti morreu em Roma no dia 18 de fevereiro 1564. Seu corpo foi transferido de Roma para Florença. Recebeu um funeral solene e seu túmulo está na Basílica de Santa Croce, uma das igrejas mais bonitas do mundo e que provavelmente foi fundada pelo próprio São Francisco de Assis, em sua primeira composição. Diversos artistas foram convocados para ajudarem na construção de um monumento fúnebre que fizesse jus à importância de Michelangelo para o mundo das artes. Seu corpo não está no mármore instalado entre o primeiro e o segundo altar da nave direita, mas sim em uma tumba localizada no chão, ao lado de outros ‘Buanarrotis’ que receberam grandes honras simplesmente por serem seus parentes. A homenagem foi mais que merecida, pois sem ele não teríamos sessenta anos de obras primas, como as Pietás, Davi e a Capela Sistina.

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