Barack Obama não toca nenhum instrumento, não faz shows, nem é membro de uma banda. Mesmo assim, tornou-se o maior astro pop do planeta. Ausente do poder desde janeiro de 2017, o ex-presidente dos Estados Unidos está em toda parte.

De documentários na Netflix a playlists no Spotify, passando pela atuação decisiva na eleição de seu vice-presidente, Joe Biden, à Presidência dos EUA, Obama compreende o poder da mídia e surfa suas ondas como nenhum político fez até hoje. O lançamento da primeira parte de suas memórias, “Uma Terra Prometida”, é mais um capítulo nessa bem sucedida estratégia de projeção de valores políticos e pessoais.

LANÇAMENTO “Uma Terra Prometida”, Barack Obama Companhia das Letras R$ 79,90 / R$ 39,90 (e-book) 751 págs.

Seus dois primeiros livros, “Sonhos do meu pai” e “A Audácia da Esperança”, foram best-sellers, mas a autobiografia do 44. presidente americano deve fazer ainda mais sucesso graças ao tom corajoso e inspirador sobre o seu período na Casa Branca, de 2009 a 2017.

O relato está longe de ser apenas um registro de atividades à frente do Executivo americano. É a visão de mundo de um homem que sabe a dimensão de seu desafio – e também de sua grandeza. Há belos momentos de confiança e convicção pessoal, mas também de culpas e incertezas, em ambos os casos, tentativas vãs de mostrar que estamos diante de um homem comum. Nessa dialética entre o homem e o mito, o livro atinge seu objetivo: servir como um documento histórico, mas também como farol de inspiração para as futuras gerações. A sensatez, o bom senso e a serenidade com que são abordados temas delicados e mesmo adversários políticos nos dão a impressão de que Obama escreve sobre um mundo que já não existe há muito tempo, não apenas há quatro anos.

A presença feminina em sua vida – e a ausência do pai – são apresentadas como fatores que moldaram sua personalidade. O contexto familiar, inclusive, é citado com tanta frequência quanto os atos políticos, o que não deixa de ser curioso em um livro de memórias de um presidente. Fica claro que os valores que aprendeu com a avó, a mãe, Michelle e as filhas, Malia e Sasha, são partes tão intrínsecas de suas decisões como os encontros com eleitores durante a corrida para o Senado do estado de Illinois, em 2004, sua primeira grande conquista política.

A obra é um bom termômetro sobre a interferência histórica exercida por um presidente americano. Em oito anos, ele enfrentou uma crise econômica, reformou Wall Street, administrou conflitos no Iraque e Afeganistão, ganhou o prêmio Nobel da Paz e criou o “Obamacare”, sistema público de saúde para cidadãos de baixa renda, entre dezenas de outras realizações. Deve ter feito um bom trabalho: tinha 53% de aprovação da população quando deixou o poder. Apesar do bom índice, não conseguiu eleger a sucessora, Hillary Clinton.

PARCERIA Com Joe Biden, presidente eleito dos EUA: elogios ao caráter do então vice-presidente (Crédito:Pete Souza)

Obama trata com carinho especial o presidente eleito Joe Biden, seu companheiro de chapa. “Se eu era visto como calmo e controlado, comedido no uso das palavras, Joe era passional, um homem sem inibições, que compartilhava de bom grado qualquer coisa que lhe passasse pela cabeça. Esse era um traço cativante, pois ele realmente gostava de gente”, descreve, sobre o novo presidente dos EUA. Para Trump, Obama dedica pouco espaço e muito desprezo, com críticas à teoria da conspiração segundo a qual o então empresário o acusava de não ter nascido em solo americano – balão de ensaio para a estratégia de disseminação de notícias falsas que Trump se tornaria mestre anos mais tarde. De maneira irônica, Obama reconhece que o subestimou. “Como eu não via muita televisão, tinha dificuldade de levá-lo muito a sério”, justifica.

COMUNIDADE Empatia: líder global, mas com o pé no chão (Crédito:Pete Souza)

Já o líder russo Vladimir Putin é apresentado de maneira objetiva e nem um pouco elegante. “O presidente Dmitri Medvedev parecia o garoto-propaganda da nova Rússia: jovem, elegante, envergando ternos europeus de alta-costura. O problema é que ele não era o verdadeiro detentor do poder. Essa vaga pertencia ao seu patrono, Vladimir Putin: ex-agente da KGB, duas vezes presidente e agora primeiro-ministro do país, e líder do que parecia ser uma organização criminosa e não só um governo tradicional – uma organização cujos tentáculos se estendiam a todos os aspectos da economia do país.”

As passagens sobre o Brasil são curiosas. O ex-presidente Lula é comparado a um “chefão do Tammany Hall”, máfia nova-iorquina famosa por acusações de corrupção no século 18. “O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, tinha visitado o Salão Oval em março, causando boa impressão. Ex-líder sindical grisalho e cativante, com uma passagem pela prisão por protestar contra o governo militar, e eleito em 2002, tinha iniciado uma série de reformas pragmáticas que fizeram as taxas de crescimento do Brasil dispararem, ampliando sua classe média e assegurando moradia e educação para milhões de cidadãos mais pobres. Contava também que tinha os escrúpulos de um chefão do Tammany Hall, e circulavam boatos de clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões.”

No trecho sobre a visita ao País, já sob o governo Dilma Rousseff, Obama resume o tom que permeia todo o livro: pouco antes de discursar para empresários brasileiros e americanos sobre oportunidades de negócios, teve de lidar com uma crise internacional e autorizar o ataque militar que culminou com a queda do líder da Líbia, Muammar Kadhafi. Uma curiosidade: Obama teve de recorrer ao celular de um assessor para dar a ordem, uma vez que o seu sofisticado sistema de comunicação ficou sem conexão. Nos dois dias seguintes, enquanto navios de guerra americanos despejavam mísseis Tomahawk sobre as defesas líbias, a família Obama visitava a favela da Cidade de Deus no Rio de Janeiro, onde o presidente assistiu a um grupo de capoeira e jogou futebol com garotos. Sua assessora Valerie Jarrett comentou: “aposto que mudamos a vida de algumas dessas crianças para sempre”.

O senso pragmático do político vem à tona. “Por mais que isso pudesse fazer com que alguns erguessem mais a cabeça e tivessem sonhos mais ousados, em nada compensaria a pobreza asfixiante que enfrentavam todos os dias – escolas ruins, o ar poluído, a água contaminada e a desordem absoluta que muitas delas precisavam encarar apenas para sobreviver.” E então entra em cena o “Obama paizão”, preocupado com o amadurecimento das filhas durante uma visita ao Cristo Redentor, onde rezou abraçado à família. Não é fácil ser presidente dos Estados Unidos.

FAMÍLIA Com a mãe, Ann Dunham, e as filhas, no Cristo Redentor: valores pessoais e fé (Crédito:Divulgação)

O poder da narrativa

Amanda Lucidon

A primeira coisa que Michelle e Barack Obama fizeram ao deixar a Casa Branca foi montar uma produtora de conteúdo. Batizada com o nome de uma canção de Stevie Wonder, a “Higher Ground” é responsável pelo podcast de Michelle, um dos maiores sucessos do Spotify, e fechou acordo para produzir sete projetos para a Netflix. Começaram bem: o primeiro deles, o afiado documentário “Indústria Americana”, ganhou o Oscar da categoria em 2020. Os próximos projetos são: “Bloom”, série sobre a indústria da moda no período pós-Segunda Guerra; “Frederick Douglass: Profeta da Liberdade”, filme sobre o abolicionista afro-americano; “Overlooked”, série baseada na coluna de obituário do jornal “The New York Times”; “Listen to Your Vegetables and Eat Your Parents”, série de educação alimentar; “Fifth Risk”, série com os heróis anônimos da democracia; “Crip Camp”, filme sobre os direitos dos deficientes físicos.