Como já argumentei neste espaço, Bolsonaro age como um chantagista quando se trata do voto impresso. Seu discurso não poderia ser mais duro e direto: ou vocês me dão o que eu quero, ou causarei confusão no pleito de 2022.

Uma parte da oposição mordeu a isca. Está disposta a instituir o novo método de votação, acreditando que com isso vai privar os bolsonaristas do pretexto para tentar alguma tramoia, caso eles se vejam ameaçados por uma derrota no ano que vem.

Quem precisa das sabotagens do bolsonarismo à democracia, quando tem uma oposição como essa? Ela não apenas se curva passivamente diante da pressão como deixa de impor à tropa de choque do presidente as perguntas de fato difíceis de responder: aquelas que têm a ver com a operacionalização das eleições.

Aliás, mais do que fazer perguntas, a oposição deveria exigir dos deputados bolsonaristas um pacote completo: não apenas a proposta de emenda constitucional que institui o voto impresso, mas também o conjunto de regras infraconstitucionais necessárias para garantir uma votação e uma apuração tranquilas. Aí sim ficaríamos sabendo o que vai na cabeça dessa gente, uma vez que é nos detalhes que o diabo mora.

Do que estou falando? De todas aquelas regrinhas que permitem solucionar dúvidas e problemas na hora do vamos ver, quando milhões de pessoas fazem filas para votar em um intervalo de poucas horas, e quando é preciso totalizar os números que vêm das urnas.

Converse com gente que trabalha no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como fiz nesta semana, e você verá que isso é o que mais os preocupa. Questões prosaicas como esta: a impressora emperra antes de cortar o comprovante de voto e é preciso chamar um técnico, que poderá ver qual foi a escolha daquele eleitor. Aquele voto continua valendo? Será repetido? Anulado? E o direito do cidadão ao voto secreto, como fica?

Mas esse é um problema pontual. Segundo os técnicos do TSE, há três questões estruturais realmente impactantes.

A primeira é definir a verdadeira finalidade do voto impresso: auditoria ou apuração.

Bolsonaro costuma dizer que deseja um modelo de votação que permita auditoria. Isso significa utilizar os comprovantes em papel para confrontar os dados da urna eletrônica em seções eleitorais onde houver alguma suspeita concreta de fraude, ou quando a diferença entre dois candidatos for muito pequena. Outra forma de auditoria é analisar uma amostra dos votos nacionais, para verificar se existe alguma discrepância estatisticamente significativa entre os registros digitais e os impressos. Seja qual for a escolha, é preciso estabelecer na legislação eleitoral os parâmetros para que cada uma dessas análises aconteça.

No entanto, a deputada Bia Kicis, autora da PEC do voto impresso, tem dito que não se satisfaz com nada menos que uma contagem de 100% dos papeluchos. Isso não é auditoria. Isso é usar o voto impresso como meio de apuração. Voltaremos à década de 1980, quando milhares de ginásios eram requisitados pelo TSE em todo o país para ser palco do escrutínio (usei de propósito a palavra antiga). Estima-se que 2,5 milhões de brasileiros teriam de ser convocados para contar votos em 2022.

A segunda questão estrutural está nas chamadas “regras de reconciliação”. Traduzindo, trata-se de definir um método para solucionar discrepâncias entre os números das urnas, dos votos em papel e dos boletins de apuração. Suponha que um apurador mal intencionado engula vinte votos do candidato que ele odeia. Surgirá um desacordo entre o papel e a máquina. Qual número vale? Mais uma vez, é preciso que a lei responda.

Finalmente, existe a questão da custódia dos votos. Quem vai fazer o transporte dos milhões de urnas com votos em papel até os locais de apuração? A polícia militar de cada Estado? A polícia federal? Companhias de segurança privadas? O Mossad, de Israel?

Onde e por quanto tempo os votos serão guardados? Dois meses? Um ano? Isso deve influir até mesmo no tipo de papel e de impressora a ser usado. Aquele papel do caixa eletrônico, por exemplo, não segura a tinta por muito tempo.

Finalmente, contar 100% dos votos em papel requer uma logística enorme, como já foi dito. Como será garantida a segurança da apuração? E se alguém quiser interferir na contagem, quais serão as penas?

Um dos problemas de ter um presidente como Jair Bolsonaro é que muitas discussões saem do plano da realidade para entrar no plano da paranoia. A paranoia bolsonarista é que as eleições digitais serão fraudadas para impedir a vitória do “mito”. Diante disso, a oposição deveria responder na mesma moeda. Deveria partir da premissa paranoica segundo a qual, longe de ser um meio para garantir eleições tranquilas, o voto em papel é uma grande oportunidade para dar um golpe na democracia.

Imagine este cenário. Bolsonaro perdeu nas urnas eletrônicas e exige a contagem de todas as cédulas. A apuração do voto impresso começa Brasil afora. De repente, em vários locais do país, os centros de apuração são invadidos por, digamos, “grupos exaltados”. Em algumas cidades há confrontos com a polícia. Em outras, a PM não faz nada. No Recife, duas pessoas têm os olhos vazados por balas de borracha. Ao fim da baderna, urnas sumiram, votos foram rasgados e todo o processo eleitoral se vê mergulhado numa grande incerteza.

O que existe na legislação eleitoral vigente para coibir um evento como esse, que inúmeras declarações do presidente e de seus seguidores tornam ao menos plausível?

O artigo 296 do Código Eleitoral diz que a pena para quem promover desordem que prejudique os trabalhos eleitorais é de até dois meses de detenção, além de multa. Será que basta como método de dissuasão? Seria curioso descobrir como os deputados bolsonaristas reagiriam à proposta de aumentar várias vezes essa pena.

Mas deixemos de lado os cenários apocalípticos. O propósito deste artigo é mostrar que a discussão binária que ocorre no parlamento – sim ou não para o voto impresso – somente arranha a superfície do problema. Um Congresso responsável precisa levar o assunto a sério e discutir desde já os desdobramentos da escolha pelo voto impresso na legislação eleitoral. A oposição tem o dever de cobrar propostas claras dos bolsonaristas, já que são eles que exigem a mudança.

Se o Congresso não fizer esse trabalho, caberá ao TSE regulamentar todos os detalhes da eleição. Um novo flanco ficará aberto para que reclamem da interferência do Judiciário na política – para que se ponha em dúvida a nossa ordem institucional.

E agora me vem a pergunta: será que o propósito não é esse mesmo, minha Nossa Senhora dos Paranóicos?


PS: Falei mal da oposição passiva, faltou falar mal da oposição colaborativa – a que acredita de fato que voto impresso é uma boa ideia. O deputado Aécio Neves é seu maior expoente. Ele se viu obrigado a defender essa tese desde que alegou fraude nas eleições que perdeu para Dilma Rousseff, em 2014. Hoje é quase tão fanático dos papeizinhos quanto a bolsonarista Bia Kicis. Não será surpresa se os dois dançarem uma rumba quando a ideia passar no plenário.