Passados mais de 30 dias do início da quarentena provocada pela pandemia do coronavírus, não há uma só pessoa que não queira voltar à vida normal. Depois de tudo isso, no entanto, o que será “voltar ao normal”? Voltaremos à realidade que conhecíamos ou teremos uma vida diferente? São muitas dúvidas sobre o que vêm pela frente — e quando isso vai acontecer. Alguns governos estaduais e municipais já pensam em flexibilizar o isolamento, mas ninguém sabe ao certo como será a volta das crianças às aulas, por exemplo, ou atividades corriqueiras como ir à academia, fazer compras, viajar ou simplesmente pegar um cinema no fim de semana.

Coisas simples que nem pensávamos a respeito, ganham agora uma nova dimensão. O fato é que não seremos mais como era antes. O sofrimento, tanto das pessoas como das empresas, tem sido grande. Setores inteiros, como o aéreo e o turismo, praticamente derreteram. A pandemia igualou a todos, sem distinção de classe. “Para sair disso será preciso uma reconfiguração completa”, afirma Ana Leão, diretora da Isobar, empresa de marketing do grupo global Dentsu Aegis Network. A companhia acaba de realizar uma pesquisa na China, primeiro epicentro da pandemia, para tentar compreender o que mudou após a crise. O levantamento realizado entre 28 de fevereiro e 3 de abril ouviu 150 executivos com o objetivo de olhar para o fenômeno e tentar descobrir como as pessoas e as empresas vão se comportar a partir de agora.

O resultado mostrou que a maioria, 77% dos entrevistados, já trabalha em planos para a recuperação que incluem o uso maior das tecnologias inovadoras que se mostraram essenciais durante a pandemia. Uma das grandes características do coronavírus, segundo a pesquisa, é que ele provocou uma antecipação forçada do futuro, aumentando a integração digital entre empresas e consumidores e tornando o e-commerce e o sistema de delivery ainda mais estratégico. O home office também veio para ficar, já que muitas empresas perceberam que podem economizar com isso. Segundo David Braga, CEO da Prime Talent, empresa especializada em recursos humanos e alta gestão, os profissionais também precisarão se adaptar. “As companhias devem reduzir pessoal e níveis hierárquicos, buscando funcionários mais polivalentes e com novas competências para assumir responsabilidades e gerir equipes à distância”, afirma o executivo. “A digitalização avançou tanto que não vamos voltar ao que era antes.”

Cotidiano pós-pandemia

O trabalho remoto reduzirá ainda o número de viagens dos executivos. Isso sem falar no efeito dominó que demissões e home office devem ter sobre o mercado imobiliário comercial, esvaziando muitos prédios de escritórios e derrubando os alugueis. As empresas, no entanto, se beneficiarão da redução de gastos com água, luz, transporte e alimentação dos funcionários. Por outro lado, terão que investir mais em tecnologia para garantir infraestrutura digital aos funcionários que passarão a trabalhar remotamente.

A nova realidade também provocará mudanças no estilo de vida dos profissionais. Com o isolamento, muitos empregados estão revendo suas prioridades. Segundo Braga, a convivência maior com os filhos e a família colocou a vida sob um novo prisma e muitos começam já buscam novos propósitos. “Sem perder tempo com transporte e podendo se organizar para trabalhar sem a rigidez dos horários, vários profissionais estão fazendo cursos online e se requalificando de olho em novas oportunidades”, explica o consultor.

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O reflexo também terá efeito sobre os transportes. Vários modais devem ser revistos para ajudar as pessoas a se moverem pela cidade com menor acúmulo de pessoas. Em cidades fortemente atingidas pela epidemia, como Milão, na Itália, já se estuda ampliação de ciclovias para facilitar a circulação das pessoas sem aglomerações.

Máscaras obrigatórias

O Brasil será obrigado a prestar mais atenção na lotação de ônibus e metrôs em horários de pico. “A atualização do transporte público, a oferta de transporte compartilhado, como bicicletas, e o fim da exigência presencial em muitos trabalhos e serviços serão essenciais para ajudar o transporte a evoluir e evitar a volta ao uso maciço do automóvel, que têm forte impacto no meio ambiente”, explica Luisa Peixoto, consultora especialista em mobilidade urbana da startup Quicko. De qualquer maneira, uma coisa já é certa: o uso de máscaras deve reinar por muito tempo. Em São Paulo, decretos do governador João Doria e do prefeito Bruno Covas tornam obrigatório o uso de máscaras em transportes públicos, carros de aplicativos (Uber e outros) e táxis a partir de 4 de maio.

Outro setor que vai precisar se reinventar é o de eventos. Após amargar altos prejuízos com cancelamento de pelo menos 50% das atividades só neste ano, o segmento trabalha com dois cenários: um mais positivo, com a vacina e a volta da convivência entre as pessoas, e outro, sem vacina, com maiores restrições e contingências como a redução da quantidade de pessoas em locais públicos. Nos dois cenários as perdas são grandes em todas as cerca de 50 mil empresas do setor. “O pior é trabalhar com a incerteza, sem saber quando será essa flexibilização”, afirma Doreni Caramori, presidente da Associação Brasileira dos Promotores de Eventos (Abrape).

A flexibilização ainda é um grande ponto de interrogação, especialmente para os profissionais de saúde. Eles alegam que, enquanto não se faz testes em massa para toda a população, não há dados suficientes para que o poder público possa afrouxar o isolamento. “Sem testes nós não temos um diagnóstico da dimensão da epidemia no País e, sem isso, não sabemos quando haverá a redução dos casos e a disponibilidade de leitos. É preciso um comando nacional para isso não se tornar uma aventura”, explica Helio Bacha, infectologista e especialista em saúde pública.

Ensino à distância

Enquanto o afrouxamento não vem, as escolas vão tocando projetos de Ensino à Distância (EAD). Na China, a volta tem sido bastante gradual, começando apenas com os estudantes mais velhos, desinfecção com álcool gel e distanciamento em salas de aula. Ainda não há, porém, previsão para volta às aulas das crianças. Assim como o home office, o EAD também veio para ficar. Muitas escolas tiveram de investir em plataformas digitais para continuar a dar aulas, num movimento que não deve voltar atrás. “Isso pode ser um ganho para os pais, que deixarão de ter de levar filho para aulas de inglês, por exemplo, o que reduzirá também o trânsito”, afirma Ana Leão. Apesar de todos os problemas, a adaptabilidade do ser humano deve prevalecer. Intensificaremos os cuidados com nossos filhos e idosos, nos preocuparemos mais com a saúde e o meio ambiente, reduziremos os excessos consumistas. Para Deborah Moss, psicóloga e especialista em neuropsicologia e desenvolvimento humano pela USP, fomos tirados da zona de conforto e tivemos de reaprender a dar valor ao que é realmente importante em nossas vidas. “A doença e a morte nos mostrou que temos de distinguir o que podemos controlar e o que não podemos”.

Isso também pode ser constatado pela pesquisa da Dentsu. Segundo a consultora Ana Leão, a conclusão é de que passamos por quatro fases nessa epidemia: a primeira foi o assombro e a negação; a segunda foi a busca por soluções mágicas; a terceira foi entender que precisávamos ficar em casa para reduzir o contágio; a quarta onda, que já é uma realidade na China, é a do compromisso social, com pessoas e empresas tomando atitudes menos individualistas e pensando no todo da sociedade. “Depois desse chacoalhão, certamente vamos sair melhor como uma sociedade”, conclui a consultora. Depende de cada um de nós.

 


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