MAKING OF Na tela da TV,o ex- presidente Bill Clinton, que conversa com Fernando Henrique pela internet, durante filmagem acompanhada pelo diretor Belisario Franca (sentado à dir.) (Crédito:Divulgação)

A acidentada história brasileira é repleta de líderes duvidosos. Ditaduras, populismo, presidentes-generais, dois impeachments e vices que assumiram em circunstâncias dramáticas mais atestam uma instabilidade fundamental do que a firme trajetória de uma sociedade destinada ao futuro. Assim, é com um misto de satisfação e amargura que se assiste a “O presidente improvável”, documentário sobre a vida de Fernando Henrique Cardoso, cuja estreia, no dia 31 de março, coincidiu providencialmente com o aniversário do golpe de 1964.

O fio narrativo da obra é a carreira do ex-presidente, mas o personagem é a história recente do País. O ex-presidente é testemunha e autor ao mesmo tempo: foi cassado pela última ditadura, integrou-se ao movimento de redemocratização, assumiu a Presidência em dois mandatos, atualizou a agenda econômica do País, garantiu um ciclo de transições pacíficas de poder e trouxe dignidade ao cargo. Há falta de estadistas, e a cinebiografia retrata um deles, lúcido e ativo aos 90 anos. É um alento em um momento de polarização, ameaças de golpe e assassinatos de reputações.

O longa se integra à fortuna crítica já deixada pelo ex-mandatário em extensa biografia, especialmente nos seus “Diários da Presidência”. Reúne 21 depoimentos registrados durante a pandemia, entre setembro de 2020 e junho de 2021, com intelectuais, amigos e políticos com quem FHC conviveu desde os anos 1950. Entre os veteranos, o destaque é o historiador Boris Fausto, com quem conviveu na USP. Entre os políticos, o ex-presidente Bill Clinton, que lembrou o momento nos anos 1990 em que os dois tentaram, junto a outros líderes, criar uma “terceira via” mundial: “Progressistas em questões sociais, mas focados em dar poder às pessoas para que cuidem de suas próprias vidas, ao invés de ser controladas por um Estado com comando excessivo da economia”, explica o americano.

O REAL Então ministro da Fazenda, Fernando Henrique apresenta as cédulas da nova moeda (Crédito:Lula Marques)

A biografia do ex-presidente se confunde com a história do País. Ele lembra a infância em uma família de militares e políticos e a mudança para uma São Paulo “atrasada”, em contraste com o Rio de Janeiro cosmopolita em que nasceu. Do início da carreira acadêmica, o documentário cita o estudo inicial sobre o preconceito racial contra os negros, ao lado de Florestan Fernandes e Roger Bastide, mas passa ao largo do mítico “Seminário do Capital”, grupo de discussão que fundou nos anos 1950 com José Arthur Giannotti e Fernando Novais com o objetivo de reler criticamente a obra de Marx e que marcaria várias gerações de intelectuais brasileiros. Aborda ainda a passagem pela Universidade Paris Nanterre, onde presenciou Maio de 68 (“um movimento que não era baseado nas ideologias e nos partidos políticos tradicionais”).

Com o golpe de 1964, foi obrigado a deixar o País por quatro anos. O “amargo caviar do exílio” foi vivido no Chile, quando acabou redigindo seu trabalho intelectual mais famoso, o livro “Dependência e Desenvolvimento na América Latina”, coescrito em 1967 com Enzo Falleto em espanhol e traduzido em 16 idiomas. De volta ao Brasil e à USP, foi cassado em 1969. Fez parte da segunda leva de aposentados (na primeira, estavam Florestan Fernandes e o físico Mário Schenberg). Declinou de convites para lecionar em Paris e em Yale e frustrou parte da esquerda que pregava a luta armada. Escolheu o caminho institucional. Fundou o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento utilizando recursos de fundações americanas com as quais tinha contato. O Cebrap (“uma espécie de convento medieval, a gente fazia de conta que estava livre”) virou um ímã de intelectuais cassados que até hoje influencia o pensamento de humanas no Brasil.

NA ITÁLIA O presidente Fernando Henrique e a primeira- dama Ruth Cardoso, após conferência, em Florença (Crédito: Lalo de Almeida)

O centro também era solicitado pelos políticos em busca de alternativas diante da ditadura. Essa fermentação levou à aproximação com o MDB e desembocou na candidatura ao Senado em 1978, quando FHC teve amplo apoio de artistas e intelectuais e também do líder sindical Lula. Ele perdeu, mas se tornou suplente de Franco Montoro, ingressando definitivamente na trilha partidária, assumindo a cadeira no Senado no lugar dele e se integrando à campanha das Diretas Já. O documentário reúne apenas apoiadores e amigos, mas não poupa FHC de um dos episódios mais vexaminosos de sua carreira política: a eleição para a prefeitura de São Paulo em 1985, que perdeu para Jânio Quadros. “Foi horrível”, lembra. Ao dar a vitória como certa, FHC posou antecipadamente para fotógrafos na cadeira do prefeito, que foi depois “desinfetada” pelo ex-presidente. “Jânio foi precursor da demagogia moderna, com uso de imagens, antecipou o Twitter. Era um gênio da comunicação”, concede. “Não sei como fui presidente da República, não sei mesmo”, diz sem falsa modéstia. Para ele, “ganha a eleição quem usa a emoção, não quem tem razão. É quem toca nas pessoas”.

A participação no ministério de Itamar Franco, primeiro como chanceler e depois como ministro da Fazenda, foi o trampolim para o Palácio do Planalto. FHC lembra com Pedro Malan as discussões que levaram ao Plano Real. Pérsio Arida lembra, rindo, que Itamar Franco simpatizou com ele, pois achava que defenderia mais um congelamento de preços. Mas, ao contrário, o grupo em torno de FHC driblou a armadilha populista. O resto é história. A nova moeda enterrou a hiperinflação e foi o passaporte para os dois mandatos de FHC, vencendo a desconfiança e os críticos. O tucano lembra como foi difícil convencer a população didaticamente (Silvio Santos deu uma mão em seu programa). E também vencer os adversários. Ele se reuniu com Lula para explicar, e o petista entendeu perfeitamente o novo plano – por isso, ficou contra.

Modernização

O documentário é uma boa oportunidade para lembrar que os anos FHC foram de grande transformação. O governo tinha a ambição de superar a era Vargas. Enquanto o debate atual gira em torno de um liberalismo de almanaque (ao mesmo tempo em que Bolsonaro patrocina interesses corporativos), apenas no primeiro mandato o social democrata FHC realizou 90 privatizações. Estatais como a Vale do Rio Doce e a Telebras foram leiloadas. O monopólio da Petrobras foi quebrado. E com a oposição feroz do PT e da oposição. Esse momento de virada aconteceu sob os gritos de “Fora FHC” e em meio a marchas de protesto dos sem-terra, que mesmo assim foram recebidos com pompa no Palácio do Planalto pelo então presidente.
O arco histórico se fecha com a entrega da faixa presidencial a Lula, em 2003, numa transição pacífica e civilizada de poder rara na história republicana. FHC disse que ficou chateado com a derrota de seu candidato (José Serra), mas sabia que alguém “como Lula” precisaria chegar ao Planalto. Daí, o sociólogo voluntariamente abandonou a política e voltou à vida intelectual, sem renunciar ao debate público. O próprio cenário do documentário, a fundação que leva o seu nome (criada na tradição dos ex-presidentes americanos), é uma exceção no costume político brasileiro e carrega a ambição de perpetuar no futuro o patrimônio histórico de uma era.

EM CENA Fernando Henrique conversa com Pedro Malan, ministro da Fazenda dos dois mandatos do presidente (Crédito:Divulgação)

Tudo isso é retratado na película, mas já está fartamente documentado em inúmeras entrevistas e obras que cercam o ex-presidente. O importante é a conexão dessa história com a realidade atual. É significativo que FHC fale sobre suas dúvidas a respeito do instituto da reeleição, que inaugurou após introduzi-lo na Constituição. Já havia feito o mea culpa antes e agora deixa patente. Faz ressalvas ao uso do impeachment: “Historicamente, é muito complicado fazer. Marca muito a sociedade, polariza, não acho que seja construtivo. Mas às vezes é inevitável”. Também evita falar do atual presidente. Bolsonaro não é citado nenhuma vez. Nem há debate sobre as novas ameaças golpistas, apesar da preocupação constante com a democracia (“Eu sempre tive a percepção de ter ajudado a consolidar a democracia. Vai ficar? Espero que sim. Temos espaço para nos transformarmos em um grande país”).

“Com as filmagens aprendi a ter mais confiança em uma democracia construída a duras penas e a não ficar desesperado com a situação política atual” Belisario Franca, diretor de O Presidente Improvável (Crédito:Marco Ankosqui, SP)

“Não pode ter um momento mais apropriado para esse documentário”, diz o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia. “O debate de ideias se transformou em uma radicalização entre PT e Bolsonaro”, critica. “Minha equipe tem uma média de idade abaixo de 35 anos. Eles só começaram a entender a trajetória de luta pela democracia no decorrer das filmagens. Não tinham ideia do que havia acontecido”, afirma o diretor Belisario Franca. A própria obra é testemunha do tempo. “O presidente improvável” foi vetado pela Ancine, numa mal disfarçada censura política imposta pelo atual governo, antes de ter seu financiamento liberado. A história ainda está sendo escrita.