A sucessão da juíza progressista Ruth Bader Ginsburg, morta aos 87 anos no último dia 18, adicionou um ingrediente explosivo à campanha eleitoral americana, que já vive um processo histórico. As mudanças na Suprema Corte são acompanhadas com lupa pois sua composição pode determinar decisões em temas vitais. Basta lembrar que o tribunal constitucional foi responsável por garantir as investigações de Watergate, que impuseram limites decisivos ao poder presidencial, e garantiu a posse de George W. Bush em 2001, quando o republicano teve sua eleição contestada. O desaparecimento de Ginsburg, portanto, tem o poder de moldar o futuro da sociedade americana — daí o impacto na atual campanha, já carregada de tensão.

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Ginsburg tornou-se um ícone. Entrou na faculdade de Direito de Harvard na década de 1950, quando as mulheres eram apenas 2% dos estudantes. Hoje, elas são maioria. A juíza enfrentou toda a sorte de preconceitos e passou a advogar pelas causas feministas nos anos 1970. Chamou a atenção da corte, ganhando processos importantes, fundamentando a luta pela igualdade de direitos às mulheres. Sua atuação pelas liberdades civis teve impacto em temas como o direito ao aborto, acesso a métodos contraceptivos, financiamento de campanhas e direito de votos. A atual luta da comunidade LGBT se escora em seu legado. Ela conquistou um posto no tribunal nos anos 1990, pelas mãos do democrata Bill Clinton. “RBG”, como ficou conhecida, não era apenas uma referência moral da democracia americana. Tornou-se um ícone cultural, retratado em filmes e documentários e parodiado em programas de TV. De estatura pequena e delicada, mas gigante em caráter e dignidade, ela sempre ostentava um colar feito com fios de lã em trama de crochê, produzido na África do Sul. O adereço virou um símbolo da justiça. Outro colar, metálico, era utilizado em momentos de contestação. Ela apelidou-o de “colar da divergência”. Foi o escolhido para usar após a eleição de Donald Trump.

TENSÃO Democratas usam o nome de Ruth Bader Ginsburg,conhecida como RBG, para pedir comparecimento às urnas (em cima). Joe Biden diz que apenas novo presidente deve indicar sucessor da juíza, enquanto Trump acelera a nomeação (Crédito:Evan Vucci)

Pela importância da escolha, o presidente foi rápido no gatilho e declarou que vai nomear um novo juiz, “possivelmente mulher”, até o sábado, 26. Mas o processo a jato pode virar mais uma disputa bipartidária. A indicação precisa ser referendada pelo Senado, que tem pequena maioria republicana — 53 votos em 100. As eleições acontecem em 3 de novembro. O candidato democrata, Joe Biden, deu o tom: “os eleitores deveriam escolher o presidente, e o presidente escolher o juiz”. Há fundamento para sua declaração. Os republicanos bloquearam a sucessão na Suprema Corte em 2016, último ano do mandato de Barack Obama, usando o mesmo argumento. Agora, eles mudaram de posição, com exceção de duas senadoras moderadas. Se os republicanos assegurarem 51 votos, garantem a indicação e uma guinada conservadora na corte, que passaria a ter uma sólida maioria de 6 a 3 juízes, ao invés de 5 a 4, quadro atual (Trump indicou dois dos atuais juízes). Seria uma composição antiliberal inédita desde os anos 1930.

Pleito judicializado

Isso teria impacto por décadas em temas sensíveis e poderia afetar até o atual processo eleitoral. Trump ameaça judicializar a campanha. Aponta fraudes nos votos pelos correios, sem apresentar provas, e indica que não reconhecerá uma possível derrota — seria a repetição do cenário de 2000, num imbróglio a ser dirimido pela Suprema Corte. O presidente vivia um cenário confortável até março, mas tudo mudou. A pandemia derrubou a economia e já causou mais de 200 mil mortes. As intenções de voto, que eram confortáveis para ele, passaram a favorecer Biden. Já o democrata estava desacreditado, mas uniu o partido e tem atraído até os republicanos moderados cansados da polarização política. A briga envolvendo o Judiciário pode favorecer o mandatário, que ganhou uma bandeira conservadora para desviar a atenção da crise. Mas Biden também pode se beneficiar, defendendo o fortalecimento institucional no momento em que a democracia parece fragilizada pelas bravatas de Trump. O comparecimento às urnas vai ser determinante.

A briga envolvendo o Judiciário pode favorecer Trump, que ganhou uma bandeira conservadora e pode desviar a atenção da crise

Lucy Nicholson

Diante da nova confusão eleitoral, a ala esquerda do partido democrata já propôs aumentar o número de acentos na Suprema Corte caso a manobra de Trump seja bem-sucedida. A tese tem poucas chances de prosperar. Analistas também ponderam que Ginsburg deveria ter renunciado durante a gestão Obama, para garantir a nomeação de um nome progressista (o mandato dos juízes é vitalício). Seria exigir demais. Depois de enfrentar o preconceito e várias doenças agressivas, a atitude firme e serena de Ginsburg já estabeleceu um padrão de dignidade que está tão em falta nos tempos atuais. Continuará a ecoar na vida política do país.