Na área de embarque do Terminal 2 do Aeroporto Internacional de Guarulhos, muitas coisas acontecem. Motoristas de aplicativo deixam passageiros apressados, filas se formam na frente dos balcões das companhias aéreas e lojas e restaurantes operam normalmente. No segundo andar, ao lado de uma agência do Banco do Brasil, é possível ver um grupo de homens sentados no chão sobre uma camada de cobertores.

BOA AÇÃO A aposentada Eliane Alves Gomes, que viu os refugiados afegãos na TV, leva mantimentos ao aeroporto (Crédito:Marco Ankosqui)
Marcos Ankosqui

 

Eles gargalham enquanto bebem chá e comem bolachas. São nove horas da manhã e centenas de afegãos, acampados no local, estão prontos para encarar mais um dia dentro do aeroporto. Bebês choram a plenos pulmões, mães caminham para lá e para cá com chaleiras elétricas e passageiros de toda a sorte passam por ali para acessar os caixas eletrônicos que dividem espaço com colchões e cobertas.

“Saí do Afeganistão porque as minhas filhas têm o direito de estudar, assim como meus filhos. Elas podem namorar” Assadulah Kahliqyar, comerciante

O espaço, incluindo um corredor adjacente, está cheio. O número de ocupantes varia, mas a média é de 130 pessoas morando ali de maneira provisória, esperando a vaga em um dos abrigos disponibilizados por diversas entidades: governo estadual, municipal, iniciativa privada e organizações sem fins lucrativos. A superlotação acontece porque, desde que o governo brasileiro autorizou a concessão de vistos humanitários aos imigrantes vindos do Afeganistão, não houve uma mobilização nacional para controlar a situação, caso que também acontece com imigrantes de outras nacionalidades, como os venezuelanos e os haitianos.

Marco Ankosqui
Marco Ankosqui

“Em um único dia, quando o Talibã assumiu o poder em Cabul, nós perdemos tudo. Por seis meses ficamos em choque. Como um grupo pequeno conseguiu tomar conta de tudo tão rápido?”, questiona o empresário Jawad Rajab, de 38 anos, que fugiu com a família para o Irã em meados de fevereiro. Há quatro dias morando no acampamento do aeroporto — que é separado em áreas para solteiros e para famílias em barracas improvisadas feitas com cobertores —, ele espera conseguir resolver a vida no Brasil.

RUMO A SÃO PAULO Asadullah Khaliqyar, ao centro, rodeado por sua família, vai trocar a vila em Morungaba por uma casa na capital paulista, paga por missionários (Crédito:Marcos Ankosqui)
Marco Ankosqui

Segundo Rajab, há muita dificuldade no Irã para conseguir a documentação necessária para viver, como os equivalentes ao CPF e RG, e conta bancária. Fluente em Inglês, formado em Matemática e Estatística, Rajab diz que não vê a hora de aprender o português e achar um lugar para ficar.

Em seu país, o Talibã, grupo fundamentalista e ditatorial atualmente no poder, proíbe que meninas estudem ou até mesmo saiam de suas casas. Há perseguição contra qualquer pessoa que tenha trabalhado no governo durante os vinte anos de ocupação norte-americana, bem como disputas tribais envolvendo minorias.

MATRIARCA Sima Gul Ahadi, 52 anos, chora ao falar de quatro de seus filhos que ainda permanecem no Afeganistão; ela chegou ao País com o filho e a nora grávida, e agora tem uma neta brasileira (Crédito:Marcos Ankosqui)

Em seu discurso de abertura na 76ª Assembleia Geral da ONU, em setembro do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que o Brasil concederia “visto humanitário para cristãos, mulheres, crianças e juízes afegãos”. A verdade, porém, é que o visto é aberto a todos em situação de vulnerabilidade, sem distinção religiosa, principalmente porque a estimativa é de que apenas 1% da população seja composta por cristãos.

De acordo com o Ministério das Relações Exteriores, desde o início da política, em setembro de 2021, até o dia 14 deste mês, já foram autorizados 6.299 vistos a afegãs e afegãos, cujas vidas estavam em risco em seu país. Na maioria dos casos, sua vinda ao Brasil foi intermediada por organizações da sociedade civil, que os recebem e promovem sua integração local. Ainda segundo a pasta, as embaixadas em Islamabad, Teerã, Moscou, Ancara, Doha e Abu Dhabi estão habilitadas a processar os pedidos de visto para acolhida humanitária.

Marco Ankosqui

Para o secretário de Desenvolvimento e Assistência Social da Prefeitura de Guarulhos, Fábio Cavalcante, o que está acontecendo agora é um aumento da demanda e do número de imigrantes afegãos que chegam até o Brasil. “Há quatro voos comerciais que chegam diariamente dos países próximos ao Afeganistão. Entre os passageiros, não estão somente imigrantes, mas qualquer pessoa que queira fazer uma viagem ao Brasil e também brasileiros voltando de destinos populares como Dubai”, diz. Não há como prever o número de refugiados que chegarão por dia. “Começamos recebendo duas, três pessoas, mas já chegamos a 80 em um único voo, só sabemos o número exato quando elas chegam aqui”, explica.

O Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante, que fica ao lado esquerdo do acampamento improvisado no aeroporto, é a primeira acolhida aos afegãos, com café da manhã, almoço e jantar, além de kits de higiene e cobertores. Eles também têm a situação vacinal atualizada. “Disponibilizamos todas as vacinas que precisem, não só contra a Covid-19. As pessoas são bastante receptivas”, diz Cavalcante. Assim que são cadastrados, é iniciada a árdua busca por vagas junto ao governo estadual, responsável por gerenciar essas vagas de acolhimento. Nos abrigos de Guarulhos, não há mais vagas, apesar de haver previsão para novas aberturas.

Marco Ankosqui

O Ministério da Cidadania, que coordena na esfera federal a situação de todos os imigrantes que chegam ao País, independente da nacionalidade, contemplou a prefeitura local com um repasse de R$ 240 mil por meio da portaria expedida em 5 de outubro. Para Cavalcante, esse valor já é insuficiente, devido ao número de refugiados.

“Agora o nosso plano é ir até Pacaraima, em Roraima, para aprender com o pessoal que recebe os venezuelanos como otimizar o nosso trabalho aqui”, diz Cavalcante, se referindo ao fluxo de venezuelanos entrando pela cidade de fronteira, ainda muito grande. O governo federal garante a entrada no País, mas deixa o trabalho de acolhimento na mão de prefeitos, governadores, instituições como a ACNUR e Cáritas, e voluntários.

Na cidade de Morungaba, no interior de São Paulo, fica a Vila Minha Pátria, parte de um projeto missionário das igrejas batistas do Brasil, que não recebe dinheiro público. Em um espaço de 180 mil m2, estão 72 chalés, com infraestrutura de uma grande pousada no campo, cedida por um dos membros da agremiação em comodato por um período de cinco anos. Ali moram atualmente 154 afegãos, sendo 74 mulheres, 80 homens e 56 crianças e adolescentes. Há uma escola no local e a preferência para receber as pessoas ali se dá entre mulheres grávidas, idosos e doentes.

A coordenadora do projeto, Fabiola Molulo, explica que a ideia era acolher apenas 56 pessoas, com a qual já havia um acordo, mas quando a situação começou a se agravar, surgiu a oportunidade de fundar a Vila, que abriu as portas em abril. Lotados, recebem membros das famílias que já estão nos chalés, e também estão no cadastro da prefeitura, que encaminha parte dos refugiados do aeroporto.

Marco Ankosqui

Shabir Ahadi, de 33 anos, que chegou ao País com a mãe e sua mulher, grávida de oito meses, já é pai de uma menina brasileira. Ele trabalhou como diplomata, morando em diversos países europeus. “Perdemos tudo, mas a vida recomeça, fomos muito bem acolhidos aqui”, diz.

O objetivo da Vila é que os afegãos façam aulas intensivas de português, tirem seus documentos, como a carteira de trabalho, e saiam dali com perspectiva de autossuficiência. A próxima família a se mudar do local será a do comerciante Asadullah Khaliqyar, de 48 anos, com mulher, irmã e cinco filhos, entre 13 e 24 anos, que vão para uma casa na capital paulista. O projeto missionário irá garantir aluguel, cesta básica e qualquer outra necessidade que a família possa vir a ter por um período de um ano. Há medo e expectativa para a mudança, mas há bastante esperança também.