“O anúncio da minha morte por parte do médico não me lançou a um abismo confessional. Ou obrigou-me a passar em revista a existência como uma espécie de purificação e esboçar um retrato favorável. Naturalmente não estava preparada para uma sentença que quebrava o tabu da minha imortalidade, e deslocava-me do epicentro da vida, onde estivera instalada com haveres e afetos. Para diluir-me no pó do tempo.”

Morte Anunciada é um dos 147 brilhantes e reflexivos textos que compõem Os Rostos que Tenho, testamento literário de Nélida Piñon. Em 2020, aos 83 anos, a autora carioca de origem espanhola publicara Um Dia Chegarei a Sagres, um de seus melhores e mais premiados trabalhos.

Daí até o momento de sua morte, por complicações na vesícula, em dezembro de 2022, aos 85 anos, dividiu o tempo, que sabia ser escasso, entre duas missões.
• A primeira estava ligada aos eventos de lançamento do livro, sessões na Academia Brasileira de Letras, onde foi a primeira mulher a ocupar a cadeira de presidente, e palestras mundo afora.
• A segunda missão foi cuidar da redação do que viria a ser sua última obra, bela coleção de crônicas autobiográficas que sai agora pela Record.

Em meio à miríade de emoções que afloram ao se ter conhecimento de que a vida se esvai, Nélida foi extremamente racional. Organizou seu acervo de fotografias e objetos pessoais, doando grande parte desses documentos ao Instituto Cervantes, em Madri.

Seis meses antes de morrer, inaugurou, na sede da mesma instituição no Rio de Janeiro, a Biblioteca Nélida Piñon, com cerca de oito mil volumes.

Legado aos leitores

Para um escritor, poder planejar uma despedida como Os Rostos que Tenho é um privilégio. No auge de sua forma, Nélida pode voltar aos temas que lhe eram caros: a família, o processo da criação literária, a convivência com os colegas de ofício.

Lembrou de casos divertidos ao lado de Clarice Lispector, Rubem Fonseca e Gabriel García Márquez; da infância na casa dos avós; da admiração por Luís de Camões e Fiódor Dostoiévski.

Às portas da morte, deixa a lição de que a vida vale a pena — e que, para um escritor, não há legado maior nem mais profundo que as próprias palavras.