TERROR Vítimas se escondem e tentam fugir: em nove minutos de tiroteio, quase 600 pessoas foram atingidas (Crédito:Getty Images 2017 )

Stephen Paddock, o aposentado de 64 anos que pagou 125 dólares para se hospedar em uma suíte com cama king size e enormes espelhos pendurados nas paredes do cassino Mandalay Bay, em Las Vegas, não matou 59 pessoas e deixou 527 feridas apenas porque levava uma vida sem graça um uma região um tanto vulgar dos Estados Unidos. Paddock se tornou o maior assassino em série da história do país ao atirar a esmo em seres humanos que viam um festival de música porque era filho, herdeiro e discípulo de uma cultura que venera armas e homens que sabem manuseá-las. A matança consumada por um sujeito sem histórico policial ou conexões com terroristas segue uma fórmula bastante conhecida dos americanos: um estado mental deturpado associado com a disponibilidade de instrumentos letais. “Resolver a questão do acesso e da propagação de armas talvez seja a questão mais urgente dos Estados Unidos”, diz Saul Cornell, professor de história da Universidade Fordham, de Nova York, e uma das maiores autoridades do assunto no país.

O ATIRADOR Stephen Paddock comprou legalmente mais de 40 armas, mas ninguém achou que isso era um problema (Crédito:MANDEL NGAN)

Até a quinta-feira 5, 275 ataques em massa aconteceram em território americano em 2017, o que dá a impressionante média de quase um por dia. Para fazer parte dessa estatística, contabilizam-se casos com pelo menos 4 mortos – ou seja, são massacres de grandes proporções. Em um país que garante o porte de armas como um direito constitucional, isso não é coincidência. Dados oficiais indicam que há 300 milhões delas nas mãos de civis, o que as tornaram tão populares quanto um simples smartphone. Não à toa, os Estados Unidos lideram o ranking mundial de armas per capita (88 por cem moradores), segundo dados das Nações Unidas. Armas, não é preciso dizer, matam. Em 2016, mais de 30 mil americanos morreram depois de atingidos por disparos, e o número aumenta a cada ano. Na semana o passada, Paddock superou o recorde macabro que havia sido quebrado em 2016 por um atirador que matou 49 pessoas em uma boate gay de Orlando, na Flórida.

Acontecimentos como esses não devem ser vistos como acidentes de percurso. Eles são reflexo da própria identidade do país. Ter o direito de portar armas para se defender está no imaginário coletivo americano. A independência dos Estados Unidos foi conquistada a balas, e usar com precisão um revólver sempre foi algo digno dos heróis da nação. O cinema, talvez o mais hábil catalizador dos desígnios nacionais, não só capturou a mensagem como a amplificou para multidões. O atirador passou a ser alguém a ser venerado e, por que não, imitado. Foi assim nos faroestes, foi assim nos filmes de guerra, é assim nos filmes de ação que lotam as salas do mundo inteiro. Em 2015, “Sniper Americano”, indicado a seis estatuetas do Oscar, trouxe a história do atirador militar mais letal dos Estados Unidos. Com sua mira extraordinária, ele matou 255 pessoas no Iraque. Ao colocá-lo nas telas como um patriota sensível, o diretor Clint Eastwood escondeu o fato de que o tal sniper era apenas um assassino. Atualmente, uma das séries mais populares do Netflix é “O Atirador”, centrada na trajetória um ex-fuzileiro que, adivinhe, atira e mata como ninguém.

QG DA BARBÁRIE Fuzis e o corpo do atirador na suíte: ação planejada durante 3 meses (Crédito:MANDEL NGAN)

Após o maior massacre por armas de fogo no país, os Estados Unidos retomaram o eterno debate sobre o endurecimento da legislação. A realidade é que nada vai mudar. De 2011 a 2016, mais de cem projetos de lei de controle de armas foram apresentados no Congresso. Nenhum passou. Em 2016, semanas depois da morte de 49 pessoas na boate de Orlando, o Senado recebeu uma proposta de proibição de venda de armas para cidadãos que estavam na lista de risco de terrorismo do FBI, mas os parlamentares não a levaram adiante. Se depender do presidente Donald Trump, as armas continuarão a circular livremente. Em pronunciamento após o ataque em Las Vagas, Trump pediu união aos americanos e não fez qualquer menção sobre maior rigidez no controle de venda de armas no país. Trump é um defensor perseverante dos dispositivos letais. Durante as primárias presidenciais, afirmou que as famílias americanas precisam se defender e gabou-se de atirar “como um profissional.” No governo, fez estragos. Em fevereiro passado, sancionou uma medida aprovada no Congresso, revertendo uma norma do governo Barack Obama, que proibia cerca de 75 mil pessoas com problemas mentais de comprar armas.

O discurso belicista de Trump, que ameaça “destruir totalmente” países inimigos como a Coreia do Norte e mandar para “debaixo da terra os terroristas que ameaçam nossa nação” dá lastro para a cultura de armas nos Estados Unidos. Além de fomentar um problema que provavelmente fará mais vítimas a cada ano, Trump sucumbe à dinheirama que os lobistas do setor despejaram em sua campanha presidencial. No ano passado, a Associação Nacional do Rifle (NRA) doou US$ 33 milhões para o então candidato Trump e outros US$ 20 milhões para senadores republicanos. Detalhe importante: os candidatos democratas receberam US$ 100 mil. A indústria armamentista é uma das mais lucrativas dos Estados Unidos. Ela movimenta US$ 14 bilhões por ano e emprega 260 mil pessoas. Como frear um negócio tão rentável? A resposta provoca algum incômodo: é impossível conter o poder econômico. Enquanto isso, massacres como o de Las Vegas mostram que, se o país não mudar, tirando as armas das mãos de quem não deveria tê-las, novas chacinas poderão acontecer. E isso é apenas uma questão de tempo.

MANDEL NGAN