Berço do iluminismo, a França rompeu nos últimos anos a tradição da participação dos filósofos no debate público e de grandes pensadores fortemente engajados em lutas sociais. Em 1968, essa tradição rodou o mundo. Intelectuais agitavam fervilhantes trocas de ideias nos cafés parisienses e se aglomeravam em confrontos ao ar livre, na luta contra o colonialismo, por direitos trabalhistas, pelo feminismo ou por uma revolução de costumes. Essa tendência mobilizou por décadas estudantes, escritores, jornalistas e filósofos, como o icônico Jean-Paul Sartre ou, mais recentemente, o midiático Bernard-Henry Lévy. Tudo isso mudou. Hoje, na era da das redes sociais e da polarização extremista, a formulação sofisticada de ideias deu lugar à gritaria de base populista.

O maior exemplo dessa transformação é o jornalista Éric Zemmour. A quatro meses das eleições presidenciais (primeiro e segundo turnos em abril), esse jornalista e polemista virou uma estrela da ultradireita com discursos inflamados e apoteóticos. Suas frases acentuam o medo e a violência e focam nos ataques pessoais e xenófobos. Esse discurso extremista (não confundir com o conservadorismo católico, que tem raízes históricas no país) faz sucesso e levou o comunicador a lançar sua própria candidatura. Seu partido é chamado de Reconquista, para lembrar a expulsão de muçulmanos pelos ibéricos em 1492.

Na raiz desse “sumiço” da intelectualidade está a evolução dos meios de comunicação. No debate público, uma das poucas estrelas da “nova filosoria” (que ganhou protagonismo após Maio de 1968) ainda atuantes é Bernard-Henry Lévy, que, aos 73 anos, se desdobra em artigos jornalísticos, livros, direção de documentários e palestras. Em 2017, BHL (seu apelido) já se preocupava com o “sonambulismo” das pessoas, falava do populismo somado ao niilismo e destacava que o momento era o espelho do que os vienenses pré-guerra de 1914 chamavam de “apocalipse alegre”.

NOVA FOX NEWS O polemista Éric Zemmour (à dir.) na CNews: candidatura à presidência e terceiro lugar nas pesquisas de opinião pública (Crédito:Riccardo Milani/Hans Lucas via AFP)

O físico Jean-Albert Bodinaud, radicado há décadas no Brasil, acompanha a cena francesa e não acredita em retração da intelectualidade, mas em visibilidade menor com a “pulverização de vozes”. Se os intelectuais tratavam de grandes questões sociais, que eram urgentes no século 20, hoje ganha força quem fala o que o público quer ouvir. Para Ascísio dos Reis Pereira, professor de Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria-RS, as redes sociais dominaram a sociedade e contribuíram para o ódio em clima de Fla-Flu. “Acabou o debate político. As pessoas se desculpam por escrever textão, porque não se tem mais paciência para ler. Redes foram criadas para comportar apenas duas linhas de texto ou receber postagens de fotos.”

Não é apenas a internet. Zemmour ficou famoso como comentarista da CNews, emissora de TV de direita que copia a norte-americana Fox News e se tornou a mais importante da França. Sua mensagem contrária a imigrantes e recheada de ataques se adequou perfeitamente ao meio e já o levou ao terceiro lugar nas pesquisas (atrás de Marine Le Pen, também de extrema direita, mas com partido consolidado, e do atual presidente Emmanuel Macron, de centro e com governo bem avaliado em meio à pandemia).

“Acabou o debate político. As pessoas se desculpam por escrever textão. As redes foram criadas para comportar duas linhas ou só receber fotos” Ascísio Pereira, professor de Filosofia na UFSM-RS

Professor titular de Filosofia da USP, Vladimir Safatle observa que houve um descolamento da intelectualidade das lutas sociais, de problemas efetivos. A especialização acadêmica fez com que os pensadores saíssem de cena, voltando-se para a universidade. A exceção são aqueles que se vincularam a movimentos ou reagem em tempos de crise, “até como meio de proteção, e não de conquista”. Para Safatle, atualmente os intelectuais lutam com grupos que combatem o racismo, a misoginia e a homofobia e em defesa de minorias indígenas e do meio ambiente. Segundo ele, o fenômeno é mundial e não apenas francês. “O meio acadêmico virou consumidor de produtos culturais, integrados à globalização. A relevância política era parte importante na universidade, mas diminuiu brutalmente”, lamenta.