14/11/2019 - 19:00
Doutor Ferreira acordou quando o rolo de papel higiênico explodiu em sua testa.
– Cacete, Doutor Fonseca, já pedi pra não me acordar dando susto. Eu tenho o coração fraco.
– Coração fraco nada, Doutor Ferreira. Acorda que tem reunião.
A cela estava lotada. Todos os funcionários da Fonseca, Ferreira & Associados estavam presentes. O pessoal de civil, de fusões e aquisições e de contencioso. Os criminalistas, como sempre, no melhor lugar, a parte de cima dos beliches.
Nos últimos anos, um a um, todos os advogados — alguns formados no exterior — tinham sido presos e agora se reuniam apertados na cela 171 do Presídio Damasceno Flores. O número da cela foi piada do diretor, que sabia que ali apodreceriam os advogados do escritório que, por décadas, atendeu à facção criminosa mais temida do País.
Hoje, coitados, Fonseca, Ferreira & Associados dividem o pátio com seus clientes. Apesar disso, o escritório continuava um dos maiores do País.
– Bom, os senhores já devem saber o motivo desta reunião. — Abriu os trabalhos o Doutor Fonseca, fundador do escritório — Enquanto o Doutor Ferreira aqui dormia, o STF decidiu contra a prisão em segunda instância.
– Eita! — Doutor Ferreira deixou escapar, atrasado, a alegria que todos já haviam demonstrado.
– Os senhores sabem o que isso vai representar para o nosso escritório, não é mesmo? — Doutor Fonseca prosseguiu — Por favor, os números, Doutor Plínio.
Diretor financeiro, Doutor Plínio já havia desenhado uma tabela sobre uma tampa de privada.
– Bem… Entre nossos clientes que serão privilegiados estão 213 assassinos, 450 traficantes e 75 sequestradores, além de mais 645 que denominamos de casos menores. Um total de 1.383 indivíduos, cidadãos como vocês, eu e o Lula, que foram presos injustamente!
– Não se empolga, Doutor Plínio. — Doutor Fonseca arretou o colega.
O homem do financeiro se acalmou e continuou.
– Temos ainda mais 1.437 que estão cumprindo pena por cautelar, fuga, compra de testemunha. Sabem como é, essas bobagens… Esses não podem sair, mas quem sabe a gente empurra junto. Aí é com o pessoal do tributário, que sempre acha um jeitinho.
– Bom, então vocês já sabem. Temos que preparar esses 1.383 habeas corpus com urgência! — ordenou Doutor Fonseca.
– Mas Doutor… Vamos levar dias para isso, considerando que nem computadores temos. — Disse o Doutor Domingos, da logística e TI — Temos só aquelas três máquinas de escrever que o diretor libera depois do almoço.
Doutor Ferreira saltou da cama.
– Esse final de semana ninguém descansa. Os que têm letra bonita ajudem, porque HC pode ser até em papel de pão.
– Se é o que temos, é o que vamos usar. — Doutor Fonseca apoiou o sócio — Vamos liberar em ordem alfabética, que é para não privilegiar ninguém.
– Ordem alfabética? — estranhou alguém. Os sócios pensaram um pouco.
– É… Na alfabética não vai dar. Comecem por vocês sabem quem. Depois os outros cinco e em seguida, o Pé de Mesa…
– O Pezão… Mas ele tá aqui por estupro.
– Um estuprinho só. Não complica! Manda pau. Digo, vamos em frente na vara. Ô, meu deus, vocês entenderam.
– E nós? — alguém perguntou.
– Nós ficamos para o fim, claro. Temos que dar exemplo. Primeiro salvam-se os passageiros, depois os tripulantes.
Assim, pelos oito dias seguintes o escritório Fonseca, Ferreira & Associados trabalhou diuturnamente para soltar os clientes presos injustamente. Em pouco tempo os HCs começaram a ser cumpridos.
De sua cela, Doutor Fonseca olhava orgulhoso a longa fila de clientes deixando o pavilhão. Assassinos, sequestradores, pedófilos, assaltantes de banco, estupradores. Tudo gente injustiçada.
O sol se punha no horizonte quando o velho advogado deixou escapar:
– Que coisa linda é fazer a Justiça cega enxergar, não é mesmo, Doutor Ferreira?
Mas o sócio não ouviu. Dormia em paz, profundamente.
Na cela 171, os causídicos mais talentosos trabalharam sem descanso para libertar assassinos, sequestradores, assaltantes, estupradores e corruptos. Só gente injustiçada