Especial Brumadinho

O relógio marcava exatamente 17h10 de terça-feira 28 quando o caixão de Janice Helena do Nascimento, de 42 anos, atravessou o arco do cemitério municipal de Brumadinho. No megafone estridente instalado em um poste, a marcha fúnebre foi interrompida abruptamente por Tigrão, o coveiro e locutor oficial dos sepultamentos, para anunciar mais um enterro. Era o féretro de Nayara Samara Coelho, de 28 anos. O pequena cemitério ficou lotado. Nos espaços entre as tumbas não cabiam tantas pessoas em luto. O caixão de Nayara teve que ser suspenso para conseguir chegar ao jazigo da família. Nem 50 m separavam as duas covas.

O constrangimento de Tigrão era de dar dó: “Não poder confortar e acolher bem as famílias nesses momentos é muito triste. A sensação é de que a culpa é nossa”, diz ele. É claro que a população e os familiares sabem que Tigrão não tem nada a ver com a superlotação do cemitério. Na cidade de Brumadinho existem três cemitérios. Para dar conta de tanto sepultamento, a prefeitura teve que abrir 30 novas covas públicas no mais novo deles, o Parque das Rosas. “Serão enterradas três pessoas por cova”, diz o coveiro voluntário João Batista Serafim, de 43 anos.

Desde a sexta-feira 25, quando a barragem de resíduos de minério de ferro da Mina Córrego do Feijão se rompeu e despejou 12,7 milhões de metros cúbicos de lama sobre parte do município, a cidade parece povoada por sonâmbulos. Os moradores nunca enfrentaram tamanha dor e tensão. A técnica em química Nayara Cristina Dias, de 27 anos, é um deles. Ela passa os dias perto do local de embarque e desembarque das equipes de salvamento, onde pousam os helicópteros de resgate trazendo as equipes de socorro enlameadas — e notícias. Ali foi instalada uma Estação do Conhecimento, onde é anunciado oficialmente tudo que se refere à tragédia e onde as famílias que perderam tudo com a lama recebem alimentação e até hospedagem. Lá, duas vezes ao dia, as listas de mortos e desparecidos da tragédia são colocadas à disposição dos familiares.

A jovem Nayara não desgruda o olhar de nada. Ela ainda não tem cabeça para imaginar o futuro, pois ainda está tentando lidar com a certeza de que seu marido, desaparecido, está morto em meio à lama da Vale. Com pouca esperança de encontrá-lo com vida, Nayara fica à espera de informações, numa angústia sem fim. “Tenho medo de não acharem o corpo dele. Quero pelo menos poder sepultá-lo e completar o ritual da vida, que é nascer, morrer e poder ser sepultado com dignidade”, afirma. Com apenas três anos de casada, ela viu sua vida desabar. “Tínhamos acabado de comprar um lote para poder construir nossa tão sonhada casa. De uma hora para a outra, tudo acabou. Nossos sonhos foram destruídos pela lama”, conta. A angústia e a tristeza de Nayara ainda é maior porque, além de seu marido, ela perdeu três outras pessoas muito próximas, entre as quais o noivo da irmã, que estava com o casamento marcado para daqui a três meses. “Hoje, tenho medo da noite”, diz ela. “Só consigo dormir à base de remédios.”

Moradores da comunidade de Córrego Feijão, onde se rompeu a barragem, os irmãos Gelson e Gilson, junto com o sobrinho Jeferson, também passam o dia à espera de uma confirmação terrível, a de que sua mãe, Diomar Custódio dos Santos, e a mulher de Gelson, Jussara Ferreira, estão entre os mortos. Aos 57 anos, Diomar trabalhava como cozinheira dos proprietários da pousada Nova Estancia, que ficou completamente submersa pela lama. Estima-se que cerca de 50 pessoas morreram no local, entre funcionários e turistas. Um dos melhores hospedarias da região, a pousada pertencia ao empresário Márcio Mascarenhas, fundador da escola de inglês Number One, que também está desaparecido. Frequentada por celebridades, a pousada recebia visitantes do Instituto Inhotim, um oásis de arte a 4,5 km de Brumadinho. “Lembro-me da minha mãe contar que levava boldo de casa para Gilberto Gil, que estava hospedado lá”, conta Gilson.

A sirene não apitou

A mesma lama que provavelmente matou Diomar ceifou a vida de sua nora, Jussara. Casada há três anos com o filho Gelson, Jussara trabalhava como camareira na pousada. Gelson é a própria imagem da desolação. Desde o dia da tragédia, ele não tem conseguido se alimentar nem dormir. Funcionário em uma mineração em Igarapé, divisa com Brumadinho, chegou em casa depois do plantão, às 7h. Ele não viu a mulher, que saía de casa uma hora antes para o trabalho. Gelson dormiu e acordou próximo ao horário do almoço, quando soube do desabamento. Em disparada, desesperado, saiu para a rua em direção à pousada. “Cheguei a socorrer algumas pessoas no caminho, mas vi que não dava mais para avançar sobre a lama”, lembra. “Era um cenário de guerra. Parecia que uma bomba de grandes proporções tinha caído sobre a região”, recorda, em lágrimas.

LUTO Moradores de Brumadinho lamentam a perda de parentes e amigos: dor sem fim (Crédito:MAURO PIMENTEL)

O estudante de direito Jeferson, neto de Diomar, conta que há pouco mais de cinco meses, os moradores de Córrego do Feijão, inclusive ele, passaram por um treinamento de evacuação da região, caso houvesse o rompimento da barragem. O plano experimental de fuga da região foi um caos. A sirene não disparou, assim como aconteceu no dia da tragédia. Na rota de fuga traçada pela mineradora, toda a população de Córrego do Feijão teria que fugir para a ponte. Assim fizeram no treino de evacuação. Se tivesse feito isso no dia 25, talvez caíssem em uma armadilha: a ponte partiu ao meio e desabou com violência sobre a correnteza do mar de lama. “É incrível como toda a orientação do treinamento foi também um desastre”, espanta-se Jeferson. Os erros e a negligência da mineradora ficarão marcados para sempre na vida daqueles que perderam seus entes queridos no Vale da Morte.