Italo Calvino é celebrado em todo o mundo por fábulas curtas e relatos de não-ficção, mas sua obra mais famosa, ironicamente, não está em nenhuma dessas categorias: é um ensaio publicado postumamente em 1991, seis anos após a sua morte. Por que ler os Clássicos reitera a importância de nomes como Charles Dickens, Leon Tolstói e Homero para a cultura mundial, enquanto enumera razões para lê-los. Uma dessas definições se destaca: “Um clássico é o livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. Em 2023, ano em que se celebra o centenário de seu nascimento, descobre-se que essa também é uma das razões para ler e reler Calvino ­— ele já é um clássico, cujos livros ainda têm muito a contar.

O lançamento de sua obra completa no Brasil confirma por que ele foi um dos autores mais importantes do século 20.

Calvino caracterizou-se como mestre do texto curto e lúdico, geralmente publicado no estilo de fábula, mas também escreveu excelentes artigos de não-ficção — ou textos híbridos, como A Entrada na Guerra, publicado em 1954. Os três contos são apresentados como histórias de ficção, mas são claramente inspirados em suas lembranças da Segunda Guerra Mundial.

Na época, era muito jovem para integrar o exército de Benito Mussolini, mas com idade suficiente para ser recrutado pelas brigadas jovens italianas. O resultado é um misto de memória e rebeldia, uma vez que, mais tarde, já participava da resistência ao fascismo como membro do partido comunista.

Pouco depois do final da guerra, encarou a carreira profissional e lançou sua primeira obra, A Trilha dos Ninhos da Aranha. Sua obra de não-ficção mais marcante, no entanto, é Um Otimista na América, sobre o período em que passou nos EUA no final dos anos 1950.

Calvino definiu os EUA como um “país de homens que escolheram a geografia, não a história”

É um relato de viagem que vai muito “além da utilidade prática”, como ele mesmo definiu: “Ao capturar a essência mutável de um país, pode-se expressar algo que vai além da descrição dos lugares vistos e passa a ser um processo de conhecimento, a relação entre quem escreve e a realidade”.

Calvino definiu os EUA como um “país de homens que escolheram a geografia, não a história” e traçou um retrato saboroso das principais cidades que visitou.

* Nova York, por exemplo, o conquistou “como uma planta carnívora absorve uma mosca”.

* Em Montgomery, no Alabama, assistiu ao discurso de Martin Luther King.

* Em São Francisco, conviveu com os beatniks — e não achou nada de interessante no movimento.

* “Vi mais a América circulando por Cleveland e Detroit do que nos dois meses que passei em Nova York. A própria ideia que eu tinha da convivência urbana mudou.”

A ideia de cidade foi mesmo um tema que sempre o acompanhou.

Talvez tenha sido o destino, pois nasceu em um local batizado em homenagem a duas delas: Santiago de Las Vegas, em Cuba — ele se mudaria para a Itália ainda na infância.

Essa obsessão pela pólis o perseguiu, inclusive em seu maior clássico: As Cidades Invisíveis, de 1972. O romance foi escrito durante a temporada que o autor viveu em Paris, e inicialmente seguiria o estilo de diário. Mais tarde, porém, ele optou por um formato bem mais ambicioso, uma coleção de narrativas curtas nos moldes de Decameron, de Boccaccio, e O Livro das Maravilhas, de Marco Polo.

A obra narra o diálogo irreal entre o explorador veneziano e o imperador dos tártaros, Kublai Khan. Como as 55 cidades do texto são imaginárias e estão vivas apenas em sua memória, são consideradas “invisíveis”.

As histórias levantam a questão da simbologia das palavras e o que elas representam, remetendo à outra questão que lhe é cara: a linguagem.

O jogo que ele estabelece com o leitor o aproxima de uma de suas maiores influências, o argentino Jorge Luis Borges, mestre dos labirintos semânticos.

O centenário marca o lançamento de obras inéditas, entre elas Nasci na América, que reúne 101 entrevistas com o autor, e Por Último Vem o Corvo, sua primeira coletânea de contos, publicada originalmente em 1949. Há ainda novidades, como a adaptação das obras para versões em audiobook.

Entre elas estão O Cavaleiro Inexistente, O Visconde Partido ao Meio e O Barão nas Árvores. Esses livros expõem outra grande inspiração do escritor: Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Se alguém ainda tem dúvida do “por que ler Calvino”, a resposta é fácil: porque é um clássico.

Três mestres do autor italiano

Jorge Luis Borges

Assim como o argentino, Calvino era obcecado pelos mistérios da linguagem e via na biblioteca uma metáfora da vida

Giacomo Leopardi

Os textos curtos e filosóficos de ‘Opúsculos Morais’ (1827) tiveram forte influência sobre ‘Palomar’, último livro de Calvino

Miguel de CervantesO ‘Cavaleiro Inexistente’ e ‘O Visconde Partido ao Meio’: obras em tom de fábula foram inspiradas no mestre espanhol