Em seus mais significativos, abrangentes e definitivos acontecimentos a história política da humanidade não escolhe um lugar para acontecer – ela acontece. Nada mais emblemático da ausência de um roteiro pré-fixado, por exemplo, que o nascimento da democracia na França, fato que mudou para o bem o destino do país e de tantas outras nações que nela se inspiraram. Cabe então a curiosidade: aonde surgiu a democracia francesa? Ela nasceu em um nobre salão do Palácio de Versalhes, denominado salão do jogo de palma, recinto que esteve fechado para o público e que agora, após detalhada e minuciosa restauração, é pomposamente entregue à visitação. “Está aberta a porta para uma esquecida parte da história”, declarou Catherine Pégard, presidente do órgão do governo que administra o palácio. A “parte esquecida” à qual ela se refere é justamente o fato de que nesse luxuoso espaço monárquico deu-se um dos mais grandiosos eventos já concretizados pelo homem no campo das liberdades individuais e das garantias fundamentais – e, por ironia histórica, justamente contra a própria monarquia. Em 20 de junho de 1789, quando morava no Palácio de Versalhes o rei Luís XVI, representantes do chamado Terceiro Estado da Revolução Francesa (parte da burguesia, artesãos e camponeses) nele se reuniram e juraram que de lá não sairiam enquanto não entregassem à nação uma constituição. Assim, o lugar reservado ao jogo de palma tornou-se abrigo da Assembleia Nacional que aprovou a Declaração dos Direitos Humanos.

PALÁCIO DE VERSALHES Símbolo do absolutismo e do desprezo dos imperadores pelo povo, foi um dos nascedouros da Revolução: cerca de dezoito mil pessoas guilhotinadas (Crédito:Vladislav Zolotov)

O jogo de palma, resumidamente, é um precursor do tênis, mas cujas regras permitiam que até quatro pessoas dele participassem de cada lado da rede – Paris transformou-se no principal centro dessa atividade, e era tamanha a qualidade das bolas feitas pelos artesãos conhecidos como “les paumiers” que elas não podiam ser comercializadas além das fronteiras da capital francesa. Foi Luís XIV, o “Rei Sol”, quem, apaixonado por tal esporte e entretenimento, ordenou em 1686 a construção de um reservado palaciano, coberto e suntuoso, para que se organizassem torneios. Uma curiosidade: não havia juiz; jogadores e público dirimiam as eventuais dúvidas que surgissem sobre determinados lances. Se o rei estivesse jogando, a sua opinião sempre prevaleceria – algo do tipo ranheta, se contrariado: “acabou a brincadeira, eu sou o dona da bola”.

LUÍS XVI Monarca da França e de Navarra entre 1774 e 1792: sob o seu reinado ocorreram as crescentes insurgências de setores isolados e do Terceiro Estado (Crédito:Divulgação)

Nos tons de vermelho, cinza claro e escuro e na cor natural da madeira restauraram-se o piso da sala, as paredes, peças decorativas, poltronas e telhado. O trabalho mais difícil e delicado, no entanto, foi o de retocar, sem a menor interferência nos detalhes originais, o maravilhoso mural de autoria do pintor e ilustrador acadêmico francês Luc-Olivier Merson, também famoso por seus designs de moedas. O mural é um dos mais altos pontos na ornamentação e embelezamento com austeridade do salão. A pintura tem como base uma das principais telas de Jacques-Louis David, pintor neoclássico que cativou a Corte. Além dessa dependência palaciana, estão abertos ao público, já que sua restauração foi igualmente concluída, os aposentos do herdeiro de Luís XV, Luís Fernando, e de suas duas irmãs. Tais aposentos, que são decorados com o esmero que o ouro exige, estavam fechados havia mais de uma década.

Nos últimos tempos, o Palácio de Versalhes surgiu no noticiário internacional devido à construção de um hotel (chamado Le Grand Contrôle) em meio aos jardins e à abertura ao público de alguns de seus dois mil e trezentos cômodos. E retorna à ribalta, agora, com o salão no qual o rei jogava palma e se divertia – o mesmo em que deputados se reuniram e decidiram acabar não apenas com esse, mas com todos os divertimentos da realeza que os explorava. Para os franceses, o salão é um forte símbolo da nacionalidade e identitário na formação da nação democrática. Não sem motivo plausível, portanto, o presidente Emmanuel Macron incluiu a reabertura do salão de jogo de palma dentre as promessas de campanha à reeleição nas eleições desse domingo, 10 de abril de 2022 – duzentos e trinta e três anos após o início da revolução que enterrou a monarquia absolutista, guilhotinou cerca de dezoito mil pessoas (incluindo reis), deu início a uma concepção de Estado moderno e transformou as relações de poder na humanidade.