Este é um daqueles textos que requerem uma prece antes de serem escritos: “Dai-me leitores pacientes e proteção contra os mal entendidos…”

Pretendo argumentar que bem lá no fundo, por trás do que dizem personagens do governo Bolsonaro como Sérgio Camargo e Abraham Weintraub, existem algumas questões que não deveriam ser descartadas de maneira sumária, como sendo meras expressões do “ódio fascista”. São objeções às chamadas políticas identitárias, um dos grandes temas do mundo atual. Como no caso de qualquer grande tema, é preciso que haja espaço para discuti-lo.

Se você ainda não me abandonou, achando que sou um olavista em pele de cordeiro, direi rápido e com clareza: acho abomináveis todas as falas de Camargo e Weintraub (e Olavo de Carvalho). Seu meio de comunicação é a ofensa, não o argumento. Não podem e não devem ser levados a sério como interlocutores.

Se alguém acredita que o movimento negro não passa de “escória maldita” composta por “vagabundos”, como disse Camargo recentemente, por que razão aceita um cargo de comando em uma entidade chamada Fundação Palmares, onde terá de interagir cotidianamente com representantes… do movimento negro?

Não vou tentar nenhuma interpretação psicanalítica desse comportamento. Suponho que tenha algo a ver com sadomasoquismo. Apontarei, no entanto, a desonestidade política: quem desqualifica quem está do outro lado do balcão dessa maneira radical, e logo de saída, não tem nenhuma intenção produtiva. Quer apenas criar impasses e inviabilizar o órgão para o qual foi nomeado.

Mas e as tais questões que mereciam ser discutidas? Vou chegar lá, prometo. Antes é preciso mais um sacrifício, relembrar a fala de Abraham Weintraub na famigerada reunião ministerial de 22 de abril.

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Disse o ministro da Educação: “Odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo. Odeio. O ‘povo cigano’. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem um. Pode ser preto, pode ser branco, pode ser japonês, pode ser descendente de índio, mas tem que ser brasileiro, pô! Acabar com esse negócio de povos e privilégios”.

Há duas ideias aí. Primeiro, que “povos” só se apresentam dessa forma para obter privilégios. Sim, é verdade que muitos ativistas estão em busca de boquinhas no serviço público. Mas é cinismo, e até mesmo um abuso da linguagem, igualar a privilégio qualquer mecanismo que beneficie minorias, como um sistema de cotas universitárias para negros que tiveram toda sua educação em escolas públicas.

Em segundo lugar, nessa fala talvez Weintraub se aproxime o máximo que o bolsonarismo conseguirá de articular uma “teoria”.

Ainda estão lá o ódio, as tiradas agressivas e o extravasamento de emoções mais do que a expressão de ideias. Mas, extraído o veneno, pode-se traduzir o resto mais ou menos assim: todas as identidades de gênero, religião, etnia devem se dissolver num todo chamado Nação. Só a Nação importa: as diferenças devem se curvar a ela. E se você é parte de um grupo que foi desrespeitado, marginalizado ou violentado ao longo da história, deixe de mimimi, deixe para lá. Fique bem quietinho, que a Nação o acolhe.

Obviamente, essa não é uma a ideia que vale a pena discutir. Poucas doenças políticas foram mais mortíferas que o nacionalismo. Ele esteve na raiz das duas grandes guerras mundiais e de outros conflitos sangrentos do século XX. Matou milhões. Além do mais, é uma forma meio contraditória de pensar: quer eliminar as tribos internas apenas para poder se projetar como tribo lá fora, entre os demais países (sobre isso, leiam os artigos do chanceler brasileiro Ernesto Araújo e o vídeo daquele ex-secretário da Cultura que queria ser Goebbels).

As objeções que têm sido feitas de maneira ponderada aos ativistas negros ou LGBTQ que põem sua identidade acima de tudo vêm de autores como Mark Lilla e Francis Fukuyama, em livros como O Progressista de Ontem e o de Amanhã (Companhia das Letras) e Identity (ainda sem tradução no Brasil). É para elas que é importante chamar atenção. Fukuyama, por exemplo, mostra que a dispersão causada pelas obsessões identitárias pode tornar mais difícil direcionar energia para grandes problemas sócioeconômicos ou ambientais. São apelos para que um ponto de vista universalista não se perca totalmente em meio ao narcisismo de pequenas (ou mesmo grandes) diferenças.


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