VEXAME EM NY Projeção na lateral do prédio da ONU chama Bolsonaro de “vergonha”. No Empire State Building, menções a “Broxonaro” e “Tchutchuca do Centrão” (Crédito:Divulgação)

Após vestir a faixa presidencial, Jair Bolsonaro levou apenas seis meses para voltar atrás em uma promessa feita ao eleitorado que ansiava pela nova política em 2018 e confessar a ambição pela reeleição. Desde então, o capitão reduziu a máquina pública a um mero aparato para abastecer a própria campanha. Para crescer nas pesquisas, apenas nos últimos meses, cortou impostos de centenas de produtos supérfluos, ampliou o valor de programas sociais, implementou novos benefícios — mesmo sem dinheiro em caixa – e interferiu na Petrobras pela redução dos valores dos combustíveis, quando percebeu que a alta da gasolina e do diesel poderiam lhe custar o mandato. Em busca de um seguro para uma investida antidemocrática, transformou a Esplanada dos Ministérios em palco para extremistas no Sete de Setembro. Na reta final da disputa eleitoral, a postura não seria diferente. Às custas do dinheiro do contribuinte, Bolsonaro fez um roadshow no exterior em uma das últimas apostas para ganhar musculatura na corrida.

Voando nas asas da Força Aérea Brasileira, Bolsonaro aproveitou os convites recebidos na condição de presidente para o funeral da rainha Elizabeth II e o discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU e criou brechas para, como candidato, vender a imagem de um líder popular, reforçar a linha ideológica do governo e atacar Lula, lucrando com a exposição midiática. Nas investidas tresloucadas, não apenas cometeu ilícitos eleitorais, como chamuscou ainda mais a imagem do Brasil perante a comunidade internacional. “O presidente é um aproveitador contumaz das facilidades e mordomias do Estado e não se envergonha em fazê-lo em quaisquer circunstâncias, mesmo nas mais inadequadas”, pontua o diplomata Paulo Roberto de Almeida. “Nos dois compromissos internacionais, ele não se privou em fazer campanha, em níveis, inclusive, vulgares. É constrangedor para o Brasil”, completa.

PALANQUE Bolsonaro discursa para apoiadores do balcão da casa do embaixador em Londres, dia 18. Abaixo, o discurso na Assembleia Geral da ONU, em Nova York, teve autoelogio sobre vacinas e ataques a Lula (Crédito:Divulgação)

Em solo britânico, do alto da sacada da residência oficial do embaixador brasileiro em Londres, Bolsonaro mostrou ao mundo no dia 18 o quão vis ele e a militância podem ser. Diante de uma Inglaterra enlutada, o presidente discursou à claque e voltou a levantar suspeitas sobre o sistema eleitoral brasileiro e a repetir slogans da campanha. “A nossa bandeira sempre será das cores que temos aqui: verde e amarela”, declarou. Um dia depois, enquanto os extremistas voltaram a se amontoar no local, um britânico demonstrou indignação. “Esse é o dia do funeral da rainha. Demonstrem algum respeito”, disparou o homem, que se identificou como Chris Harvey. Em resposta, os bolsonaristas sugeriram que ele fosse embora — o mesmo tratamento acabou dispensado aos jornalistas da BBC, rede de TV pública do Reino Unido. A imprensa internacional estampou perplexidade com os episódios. O conservador “The Times” escreveu no título de uma matéria: “Bolsonaro rompe o luto para marcar pontos políticos”.

TIMOTHY A. CLARY

Cercadinhos

Na sequência, em Nova York, Bolsonaro usou o púlpito da ONU para rememorar, de forma velada, os escândalos do mensalão e do petrolão e atribuir a Lula a responsabilidade pelos esquemas, frisando que o petista foi condenado em três instâncias, sem sublinhar, claro, que as sentenças foram anuladas. O presidente ainda assegurou ter extirpado a corrupção sistêmica, apesar dos escândalos dos pastores lobistas do MEC e do orçamento secreto, por exemplo, e classificou os atos do Sete de Setembro como “a maior demonstração cívica da história do País”. Ele concluiu o pronunciamento com o principal lema da campanha: “Deus, Pátria, família e liberdade”. Para além do evento, o presidente não tinha nenhuma agenda bilateral marcada. Aproveitou o tempo livre, então, para confraternizar com apoiadores e, mais uma vez, impulsionar o vergonhoso coro que lhe promove como “imbroxável”. Enquanto o capitão transformava agendas importantes no cercadinho do Alvorada, mensagens de protesto eram reproduzidas em marcos arquitetônicos da cidade norte-americana. “Tchutchuca do centrão”, dizia uma das frases.

Para juristas e partidos políticos, Bolsonaro praticou abuso de poder político e econômico nos dois compromissos oficiais, porque valeu-se do cargo e da estrutura pública à sua disposição para buscar uma vantagem em relação aos oponentes. “Para evitar o desequilíbrio na disputa, as regras eleitorais proíbem, por exemplo, o uso de bens móveis e imóveis da administração em campanha. No caso de Londres, o presidente infringiu a norma desde o início do voo em um avião da FAB até o discurso em um prédio público do corpo diplomático brasileiro”, explica o professor Flávio de Leão Bastos Pereira, doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Nos EUA, vale a mesma premissa. É muito fácil identificar que o discurso na ONU foi de candidato, e não de chefe de Estado, porque Bolsonaro se ateve a realizações do governo no plano interno e ao reforço de plataformas ideológicas de costumes voltadas para seu eleitorado. Esse teor não guarda qualquer relação com grandes questões internacionais e de geopolítica.”

Não se trata, aliás, apenas de uma questão pessoal do candidato Jair. Como as agendas tiveram claro cunho eleitoral, as despesas, incluindo os voos da FAB, teriam de ser pagas pelo PL. Fontes do partido, no entanto, afirmam que os gastos ficaram a cargo do Planalto. Caso a Justiça identifique a omissão, a sigla pode ser penalizada com o pagamento de multa, por exemplo. No TSE, há um entendimento claro de que Bolsonaro estica a corda por saber que, por ora, a Corte não reagirá à altura para evitar acusações de parcialidade. O absurdo foi banalizado no Brasil.